Ao se transfigurar diante dos três Apóstolos, Jesus fortaleceu nossa esperança sobre a vida eterna, animando-nos a suportar bem os sofrimentos e provações nesta terra. Sabendo nós a glória que nos aguarda, temos mais paciência em meio às atribulações. Será com esse mesmo fulgor nossa ressurreição no dia do Juízo.
Leia o Evangelho e em seguida escute a bela homilia da Festa da Transfiguração do Senhor – 06 de Agosto.
Evangelho (Mc 9,2-10)
Naquele tempo, 2Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles. 3Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar. 4Apareceram-lhe Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus. 5Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. 6Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo. 7Então desceu uma nuvem e os encobriu com uma sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu filho amado. Escutai o que ele diz!” 8E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. 9Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. 10Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si, o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”.
Evangelho (Mt 17,1-9)
Naquele tempo, 1Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. 2E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz. 3Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus. 4Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias”. 5Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!” 6Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra. 7Jesus se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos, e não tenhais medo”. 8Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus. 9Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.
A transfiguração do Senhor não foi somente para fortalecer na fé os apóstolos, mas todos os fiéis – incluindo cada um de nós -, até o fim do mundo.
A transfiguração do Senhor nos leva a refletir sobre um dos principais mistérios de nossa Fé: a encarnação do Verbo. Com efeito, quem poderia excogitar a possibilidade de uma das Pessoas da Santíssima Trindade unir sua natureza divina à humana, e – sem deixar de ser verdadeiro Deus – se tornar também verdadeiro Homem? Nunca, pelo simples raciocínio, nenhum homem – e nem mesmo algum Anjo – conceberia tal conúbio entre Criador e criatura. Para conhecermos esse belo e atraente mistério, era necessário que o próprio Deus no-lo revelasse.
Ademais, são inúmeros os episódios do Evangelho nos quais transparece a natureza humana de Jesus: o ter de fugir para o Egito, levado por Maria e José, a fim de poupar-se da espada de Herodes; o trabalhar como humilde carpinteiro, até os 30 anos de idade, evitando chamar a atenção do povo; o fazer penitência durante 40 dias no deserto, suportando as agruras de um terrível jejum; o verter sangue no Jardim das Oliveiras, em meio ao temor e à angústia ante a Paixão; o externar fraqueza física durante sua flagelação e enquanto carregava a cruz ao alto do Calvário. Por fim, a sua morte, como a de qualquer ser humano, e no pior dos suplícios.
Sem uma especial assistência da graça, seria inevitável para qualquer um, ao ouvir a narração desses fatos, concluir que Jesus não passava de uma mera criatura humana.
Verdadeiro Deus
Por isso, o Unigênito Filho de Deus, para sustentar nossa fé, tornou patente sua origem eterna e incriada em muitos outros fatos e circunstâncias: a anunciação à Santíssima Virgem por meio de um Arcanjo; o aviso a São José, em sonhos, da concepção virginal de Maria; a aparição de uma multidão de anjos aos pastores, perto da gruta de Belém, para lhes anunciar o nascimento de Jesus; a moção sobrenatural no interior dos Santos Reis Magos, sobre a providencialidade daquele Menino. Sobretudo foi categórica sua glorificação, efetuada pelo Pai e pelo Espírito Santo, no momento do batismo no Jordão.
O próprio Salvador, ao afirmar “quem crê em Mim tem a vida eterna” (Jo 6, 47), não fazia referência à sua natureza humana, mas sim à sua divindade. A multiplicação dos milagres, cujo auge foi a ressurreição de Lázaro, tornou a todos evidente o pleno poder de Jesus sobre a natureza.
Apesar dessas – e de tantas outras – manifestações serem mais que suficientes para levar os homens ao ato de fé na divindade de Nosso Senhor, apareceram heresiarcas a negá-la, já no começo do cristianismo. Aliás, uma das razões pelas quais São João, o discípulo amado, escreveu seu Evangelho, entre os anos 80 e 100 de nossa era, foi para reafirmar ser Jesus verdadeiro Deus. E o conjunto dos Evangelhos, procurando sublinhar a mesma verdade, por mais de cinqüenta vezes dá-Lhe o título de Filho de Deus.
É necessário ter essas considerações em vista, para melhor analisarmos e compreendermos a Transfiguração do Senhor.
Conveniência da Transfiguração do Senhor
Jesus poderia ter descido à Terra acompanhado de legiões de anjos, e manifestado em todo o esplendor sua infinita grandeza divina. Contudo não agiu assim. Revelou-nos sua natureza incriada de forma progressiva, e aos poucos foi se tornando mais categórico.
Um ensino puramente doutrinário não é capaz de, por si só, mover o homem a transformar sua vida. Um antigo adágio ilustra esta verdade de modo lapidar: “As palavras comovem, os exemplos arrastam”. Sobretudo quando o exemplo é íntegro e esplendoroso na verdade e no bem, tem ele uma força tal que age sobre as tendências da alma, convidando a um certo caminho – e às vezes impondo-o.
Ao tratar da Transfiguração de Jesus, assim se exprime São Tomás de Aquino sobre essa necessidade muito própria à criatura humana: “Para trilharmos bem um caminho, é necessário termos um conhecimento prévio do fim. Assim, o arqueiro não lança com acerto a seta, senão mirando primeiro o alvo que deve alcançar. (…) E isso sobretudo é necessário, quando o caminho é difícil e áspero, a jornada laboriosa, mas belo o fim” (3, q.45, a.1, c).
Fulgor transfiguração do Senhor para suportar as agruras do Calvário
No mesmo tópico acima citado, São Tomás de Aquino continua a esclarecer, com sua genialidade habitual e sapiencial clareza:
“O Senhor, depois de haver anunciado a sua Paixão aos discípulos, convidou-os a lhe imitarem o exemplo. (…) Ora, o fim de Cristo, na sua Paixão, era alcançar não somente a glória da alma, que tinha desde o princípio da sua concepção, mas também a do corpo (…). E a essa glória também conduz os que imitam seu exemplo da Paixão, segundo diz a Escritura: Por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus. Por isso era conveniente que manifestasse aos seus discípulos a sua claridade luminosa; e tal é a Transfiguração, que também concederá aos seus, segundo diz o Apóstolo (São Paulo): Reformará o nosso corpo abatido para o fazer conforme o seu corpo glorioso. Donde dizer (São) Beda: foi conseqüência de uma pia providência que, tendo gozado por breve tempo da contemplação da felicidade eterna, tolerassem mais fortemente as adversidades” (3, q. 45, a. 1, c).
A Transfiguração do Senhor foi uma excepcional graça mística concedida aos três apóstolos escolhidos, no alto do Tabor. Sua recordação ficou como uma fonte de sólida confiança, que lhes permitiu suportar os maiores sofrimentos, pois, assistindo a ela, tiveram um vislumbre da luz plena e refulgente da eternidade.
Graças místicas
A Transfiguração de Jesus fortificou as virtudes da fé e da caridade nos Apóstolos. Enquanto a fé nos faz crer na divindade de Cristo e em suas promessas, a caridade nos conduz a uma entranhada união com Deus. São duas virtudes extremamente interdependentes. Sem a fé na esplendorosa vida eterna que nos espera, a caridade tende a desaparecer.
Mas, se a fé e a caridade dos apóstolos tanto lucraram com a Transfiguração do Senhor, não haverá algo, nessa mesma linha, que poderá auxiliar a vida espiritual de cada um de nós?
A resposta é inteiramente positiva. Deus derrama graças místicas sobre todos os que trilham as vias da salvação, em intensidade maior ou menor, segundo o caso. Mas ninguém está excluído de recebê-las. É claro que tais graças místicas não isentam ninguém de realizar os esforços próprios à prática das virtudes.
Um transfiguração do Senhor em nossos corações
É fora de dúvida, pois, que Deus concede “Tabores”, ou seja, graças místicas, a cada um de nós.
Quem não terá sentido, alguma vez, uma alegria interior, um palpitar do coração, uma emoção calma mas profunda, ao assistir a uma bela cerimônia? Ao apreciar o canto gregoriano, por exemplo? Ou ao contemplar alguma imagem? Quiçá ao ver um lindo vitral banhado de luz, dentro de uma igreja silenciosa, que deixa lá fora os ruídos do mundo? São mil ocasiões em que a graça sensível nos visita, e nos concede contemplações interiores, prédegustações da felicidade perfeita que nos espera no Céu.
Dois Doutores da Igreja, Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, mestres da vida espiritual, dizem que a Providência costuma conceder aos principiantes graças místicas que depois irão experimentar novamente só no fim de suas vidas. Tal proceder divino visa fortalecer essas almas para atravessarem os períodos de aridez. É um modo comum de Deus agir: dá-nos consolações – o Tabor – para, quando vier a hora do Getsêmani, termos forças, sabendo que o fim será mais cheio de alegria e esperança.
São graças que nos animam a enfrentar os sacrifícios desta vida. Trata-se de experiências místicas que nos tornam patente quanto Jesus nos ama e quer nossa eterna glória.
Assim, ao longo de nossa existência terrena, já iremos experimentando um pouco das delícias eternas, e as tendas tão desejadas por São Pedro sobre o monte da transfiguração, Jesus as irá levantando no “Tabor” de nossos corações. Para tal, Ele exige de nós apenas uma condição: que não Lhe coloquemos obstáculos. (Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2002, n. 8, p. 10)
O que nos revela a Transfiguração de Cristo?
Ao celebrarmos a Transfiguração do Senhor, celebramos o mistério da Encarnação. Jesus, como diz a Carta de São Paulo aos filipenses, no capítulo 2, “embora fosse Deus”, igual a Deus em tudo, “não se apegou a esta majestade divina, mas esvaziou a si mesmo e assumiu a forma de servo”, ou seja, a nossa forma miserável de sermos humanos.
O que acontece é que, se Deus se une à nossa humanidade, o efeito imediato desta realidade chama-se glória. Isto é uma coisa evidente: se Deus tomou para si uma humanidade em união hipostática, o que é espantoso não é que Jesus resplandeça e mostre toda a sua glória no Monte Tabor (como nós celebramos hoje); o espantoso é que Ele não se apresente assim desde o começo! Por quê? Porque, é evidente, Deus se uniu a uma natureza humana, a um corpo e a uma alma, o que é razão de grande glória.
Ora, vamos entender isso. Se você pega um pedaço de ferro enferrujado e une-o ao fogo ardente e abrasador, é evidente que o ferro derrete e fica parecendo fogo. Não é isso? Existe a transformação do ferro: o ferro, ao invés de assumir a natureza de ferro, parece assumir a natureza de fogo. Então, assim é Deus: se uma humanidade se uniu a Deus, ela passa a ser gloriosa! Mas por amor a nós, Jesus quis que isto fosse contido, e Ele, apesar desta união divina, profunda, misteriosa e insondável, pudesse viver uma vida de servo, uma vida como a nossa; por amor a nós, viver uma vida como a nossa: sentir fome, sentir sede, ficar cansado, precisar dormir. Jesus é a encarnação do Deus de amor que, para nos levar ao estado de glória que Ele manifesta no Tabor, assume o estado de miséria de Adão na sua natureza decaída, rebaixada pelo pecado. Jesus é igual a nós em tudo, exceto no pecado.
O que quer dizer “igual a nós em tudo”? Quer dizer o seguinte: igual a nós em tudo, inclusive em certas misérias que decorreram do pecado, ou seja, a nossa situação de dor, nossa situação de fragilidade. Deus tinha outro projeto para Adão. Deus pensou que o homem, embora sendo uma criatura mortal, pudesse viver alguns dons acima de sua natureza, para além da sua natureza (os chamados dons preternaturais): por exemplo, não morrer, não sentir dor, não ter de se cansar com o suor do seu rosto. Com o pecado, Adão perdeu todas essas coisas, como relata o livro do Gênesis.
Pois bem, Jesus assume a nossa humanidade nesta fragilidade e vem até nós; mas para que os seus Apóstolos Pedro, Tiago e João não fiquem escandalizados quando o virem desfigurado no Getsêmani, desfigurado na cruz, Ele se mostra aqui transfigurado, mostra a verdade, a verdade, como Ele diz claramente no evangelho de São João: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou livremente”. Ou seja: Deus permitiu que Jesus vivesse toda aquela miséria, toda a dor da crucifixão; Deus quis isso livremente por amor a nós.
Há quem pense que isso diminuiu a humanidade de Cristo e torna essa humanidade menos “autêntica”. Porém, basta pensarmos qual forma de amor é maior: quando você sofre uma coisa que é inevitável (por exemplo, uma dor de dente em que nada se pode fazer), ou quando você sofre de modo voluntário e livre, dizendo: “Eu não precisava estar sofrendo isso, mas por amor a você, estou vivendo isso”. Assim percebemos que cada pequeno gesto de fragilidade humana de Nosso Senhor Jesus Cristo se torna um gesto livre e salvífico, de amor grandioso! A Transfiguração ilumina o restante da vida de Cristo e nos mostra: Ele podia não ter sofrido, mas por nós homens e para a nossa salvação desceu dos Céus.
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1. Circunstâncias (Mt 17, 1; Mc 9, 2; Lc 9, 28). — V. 1. Seis dias depois do colóquio com os discípulos em Cesaréia de Filipe, Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, seu irmão, os mesmos que admitira como testemunhas da ressurreição da filha de Jairo (cf. Mc 5, 37; Lc 8, 51) e havia de admitir na agonia do Horto (cf. Mt 26, 37). Quanto ao número de dias, estão de acordo Mt. e Mc., Lc. porém escreve: Passados uns oito dias, o que alguns explicam dizendo que o evangelista numera o termo a quo e o ad quem, enquanto os outros não. Talvez o mais adequado seja dizer com Maldonado que Lucas não indica o tempo de maneira precisa, mas confusa, por isso diz uns, i.e., “cerca de”.
E os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha, para que Ele se entregasse à oração (em Lc.), e os três contemplassem sua glória.
Discutem os autores sobre o monte em que se deram estes acontecimentos. — 1) Tabor: Uma antiga tradição, de que são testemunhas Orígenes (cf. In Ps. 88, 13: PL 12, 1547), Santo Epifânio (cf. De gemmis), São Cirilo de Jerusalém (cf. Catech. 12, 16: PL 33, 744), São Jerônimo (Epist. 46, 12 e 108, 13: PL 22, 491) etc., afirma que se trata do monte Tabor (hoje Djebel el-Tor, a 320 m acima da planície circundante e 662 m acima do Mediterrâneo), opinião defendida ainda por bons autores. [1]. — 2) Outro monte: Há no entanto quem rejeite essa tradição como infundada e opine que o monte da Transfiguração foi algum cômoro do Antilíbano ou, mais provavelmente, o grande Hérmon (hoje Djebel el-Sheikh) [2]. As principais razões em que se baseia a última sentença, defendida desde o séc. XIX sobretudo por católicos, são as seguintes: a) segundo Políbio (cf. Hist. V 70, 6), no tempo de Antíoco, o Grande, em 218 a.C., havia no monte Tabor (Itabyrium ou Atabyrium) uma cidade que Antíoco mesmo conquistara e fortificara. Embora não seja certo que ela ainda existisse no tempo de Cristo, Flávio Josefo (cf. Bell. jud. IV 1, 8) afirma que em 67 d.C. havia ali uma planície amuralhada e habitantes que “não tinham outra água além da chuva”. Isso porém não parece concordar com a narração evangélica, que supõe um lugar deserto. — b) Os evangelistas situam a Transfiguração imediatamente após o colóquio em Cesaréia de Filipe, sem fazer menção alguma a um possível retorno à Galiléia; sinal, portanto, de que tanto uma coisa com outra aconteceram na mesma região.
Resposta: Estas razões não têm peso suficiente para obrigar-nos a rejeitar a tradição. Com efeito, à 1.ª pode-se responder que Flávio Josefo, na obra citada e em sua Vita (cf. 37), não chama ao Tabor nem “cidade” nem “aldeia”, nomes com que designa, na mesma passagem, outros locais habitados, mas “monte”. Além disso, não seria de estranhar que, em tempos de rebelião, os habitantes daquela zona tenham se refugiado no topo do monte, nas ruínas de uma antiga cidade. A melhor resposta à 2.ª é que Cristo e seus discípulos poderiam, sem nenhuma dificuldade, ter percorrido o caminho de volta num espaço de seis dias [3]; de fato, os próprios evangelistas parecem supor que Cristo estava retornando à Galiléia, já que o descrevem, ao descer do monte, rodeado de turbas e escribas (cf. Mt 17, 14; Mc 9, 14; Lc 9, 37) e, ao sair dali, já percorrendo a Galileia (cf. Mt 17, 21; Mc 9, 28), o que dificilmente poderia ter se dado aos pés do monte Hermón.
2. Cristo se transfigura (cf. Mt 17, 2-9; Mc 9, 3-9; Lc 9, 29-36). — V. 2. E foi transfigurado (μετεμορφώθη) diante deles (Lc. diz: Enquanto orava, transformou-se o seu rosto); como tenha sido essa transmutação, declara-se logo em seguida: O seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como neve (gr. ὡς τὸ φῶς = como luz), i.e., apareceu envolto de claridade celeste. — É mais vívida a descrição de Mc.: Suas vestes tornaram-se resplandecentes e de uma brancura tal, que nenhum lavadeiro sobre a terra as pode fazer assim tão brancas.
V. 3. Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus. Lc. acrescenta: Que apareceram envoltos em glória, e falavam da morte dele (gr. τὴν ἔξοδον αὐτοῦ), quer dizer, do êxodo ou partida dele deste mundo, pela morte, ressurreição e ascensão, que se havia de cumprir em Jerusalém, i.e., falavam da morte de Cristo como fim e complemento da Lei e dos profetas. “Por Moisés é significada a Lei, por Elias são significados os profetas, pelo Senhor é significado o Evangelho: Cristo apareceu pois entre Moisés e Elias, como se o Evangelho fora confirmado pela Lei e os Profetas” (Santo Agostinho, In Joan., tract. XVII 3) [4]. Lc. complementa: Entretanto, Pedro e seus companheiros tinham-se deixado vencer pelo sono (donde talvez se possa inferir que tudo sucedera à noite); ao despertarem (gr. διαγρηγορήσαντες, i.e., resistindo ainda ao sono, ou acordados do sono), viram a glória de Jesus e os dois personagens em sua companhia.
V. 4. Então Pedro, sem saber o que dizia (cf. Lc 9, 33), i.e., fora de si por causa da grande alegria, tomou a palavra e disse: Senhor, é bom, i.e., grato e prazeroso ficarmos aqui. Se queres, vamos fazer (gr. ποιήσω = vou fazer) aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias, para nos deliciarmos sem cessar com este espetáculo, ou para que ponhas neste monte, com Moisés e Elias, o trono de tua glória. De resto, com efeito, não seria difícil construir as tendas com ramos de terebinto e carvalho, abundantes no monte Tabor. — Nota Mc. que os Apóstolos estavam sobremaneira atemorizados, i.e., com aquela reverência e pavor de que são tomados os homens ao verem coisas extraordinárias. Tal pavor, contudo, não excluía a alegria e o gozo.
V. 5. Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa, sinal e símbolo da presença divina (cf. Ex 16, 10; 19, 9.16 etc.), os cobriu, a saber: a Jesus, Moisés e Elias, tirando-os da vista dos Apóstolos, com sua sombra; e da nuvem uma voz dizia: Este é o meu Filho amado [5], no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o, i.e., obedecei-lhe como Legislador e crede nele como Mestre.
V. 6-8. Aterrorizados pela aparição da nuvem e pelo som da voz celeste, caíram os Apóstolos com o rosto em terra, até que Jesus se aproximasse e os tocasse com a mão, como também nós fazemos quando desejamos acordar alguém sonolento. Tendo os discípulos voltado a si, desapareceu a visão celeste e, olhando eles logo em derredor, já não viram ninguém, senão só a Jesus com eles. Os Apóstolos então ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus.
V. 9. Ao descerem do monte, Jesus lhes ordenou que, antes da ressurreição (até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos), não contassem a ninguém, provavelmente nem aos demais Apóstolos, nada do que viram:. A proibição de divulgar o fato tem o mesmo motivo que outras ordens semelhantes de Cristo após a realização de um milagre, qual seja: para não acirrar ainda mais o ânimo de seus inimigos e evitar que o povo o procure mais pelo desejo de ver maravilhas que pela doutrina da salvação.
Mc. nota que os discípulos não entenderam o que queria dizer ser ressuscitado dentre os mortos, como tampouco haviam entendido outras vezes as predições da paixão.
Reflexão. — 1) Por que Cristo quis transfigurar-se? a) Para corroborar em nós a fé na ressurreição; b) para erguer e confirmar nossa esperança; c) para acender em nós o fogo da caridade divina; d) para consolar com a luz da glória sua Igreja, peregrina pelas trevas do mundo; e) para mostrar-nos quem de fato Ele é: Deus encarnado; f) para dar a seu Corpo místico ocasião de festa e alegria espirituais, muito distintas dos excessos e bacanais do mundo. — 2) As quatro transfigurações do homem: a) a desfiguração, do estado de graça para o de pecado; b) a recriação, do estado de pecado para o de graça; c) a condenação, dos prazeres do mundo para os suplícios da geena; d) e a glorificação, das misérias desta vida para o descanso da pátria celeste [6].
Notas
- Na Igreja grega, a festa da Transfiguração (6 de ago.) é conhecida como τὸ θαβώριον.
- Assim pensavam Calmet, Patrizi, Fillion, Le Camus, Plummer etc.
- Cf. *G. Dalman, Les Itinéraires de Jésus. Trad. fr. de J. Marty. Paris, 1930, p. 269: “Podia-se ir a pé de Jerusalém a Cesareia de Filipe (165 km) em seis dias, sem maiores delongas”; em linha reta, Cesareia dista 80 km do monte Tabor.
- Já o dissera Orígenes (cf. In Matt., tract. 12, 38: PG 13, 1069s). Mas como Elias não profetizou nada sobre o Messias nem é contado entre os escritores proféticos, alguns autores mais recentes se perguntam qual teria sido o verdadeiro motivo de sua aparição. Alguns confessam simplesmente não sabê-lo, enquanto outros o veem nas semelhanças entre Jesus e Elias quanto à virtude, às obras, aos frutos do Espírito Santo etc.
- Cristo é Filho de Deus não somente κατ’ εξοχήν, i.e., por excelência ou mais do que os outros (pela plenitude infinita da graça habitual), mas também por ser Filho único, unigênito, por consubstancialidade, como sempre entendeu a Tradição e claramente se deduz da aposição de “o amado”, com art. (lt. dilectus, gr. ὁ ἀγαπητός = caríssimo, termo com que a LXX frequentemente traduz o hebraico יָחִיד, “único” (cf. Gn 22, 2.12.16; Jr 6, 26; Am 8, 10; Zc 12, 10; Pr 4, 3); é portanto Filho natural, eterno, único, coigual.
- Esta homilia é uma tradução levemente adaptada de H. Simón, Prælectiones Biblicæ. Novum Testamentum. 4.ª ed., iterum recognita a J. Prado. Marietti, 1930, vol. 1, pp. 403–405, n. 280–281.