SANTO DO DIA – 19 DE AGOSTO – SÃO JOÃO EUDES
Fundou a Congregação de Jesus e Maria e a Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor (1601-1680)
João Eudes nasceu em 14 de novembro de 1601, na pequena vila de Ré, no norte da França. Era o primogênito de Isaac e Marta, que tiveram sete filhos. Cresceu num clima familiar profundamente religioso.
Inicialmente, estudou no Colégio Real de Dumont, em Caen, dos padres jesuítas. Nos intervalos das aulas, costumava ir à capela rezar, deixando as brincadeiras para o segundo plano. Na adolescência, por sua grande devoção a Maria, secretamente consagrou-se a ela. Depois, sentindo sua vocação religiosa, foi aconselhado a terminar os estudos antes de ordenar-se sacerdote.
Em 1623, com o consentimento dos pais, foi para Paris, onde ingressou no Oratório, sendo recebido pelo próprio fundador, o cardeal Pedro de Bérulle. Dois anos depois, recebeu sua ordenação, dedicando-se integralmente à pregação entre o povo. Pleno do carisma dos oratorianos, centrados no amor a Cristo, e de sua especial devoção a Maria, passou ao ministério de pregação entre o povo. Promoveu o culto litúrgico do Sagrado Coração. Visitou vilas e cidades de Ile de França, Bolonha, Bretanha e da sua própria região de origem, a Normandia.
Nesta última, quando, em 1627, ocorreu a epidemia da peste, João percorreu quase todas, principalmente as vilas mais distantes e esquecidas. Como sensível pregador, levou a Palavra de Cristo, dando assistência aos doentes e suas famílias. Nunca temeu o contágio. Costumava dizer, em tom de brincadeira, que de sua pele até a peste tinha medo: ‘Desta carcaça até a peste tem medo’, dizia. Mas temia pela integridade daqueles que viviam à sua volta, que, ao seu contato, poderiam ser contagiados.
Por isso não entrava em casa e, à noite, dormia dentro de um velho barril abandonado ao lado do paiol. Inconformado com o contexto social que evoluía perigosamente, no qual as elites dos intelectuais valorizavam a razão e desprezavam a fé, João Eudes, sabendo interpretar esses sinais dos tempos, fundou, em 1641, a Congregação de Jesus e Maria com um grupo de sacerdotes de Caen que se uniram a ele. A missão dos eudianos é a formação espiritual e doutrinal dos padres e seminaristas e a pregação evangélica inserida nas necessidades espirituais e materiais do povo. Além de difundir, por meio dessas missões, a devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria.
Seguindo esse pensamento, também fundou a Congregação Nossa Senhora da Caridade do Refúgio, para atender às jovens que de desviavam pelos caminhos da vida e às crianças abandonadas. A Ordem deu origem, no século XIX, à Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, conhecida como as Irmãs do Bom Pastor.
Com os seus missionários, João dedicou-se à pregação de missões populares, num ritmo de trabalho simplesmente espantoso. As regiões atingidas pelo esforço dos seus missionários foram aquelas que mais resistiram ao vendaval antirreligioso da Revolução Francesa.
Coube a João Eudes a glória de ter sido o precursor do culto da devoção dos sagrados corações de Jesus e de Maria. Para isso, ele próprio compôs missas e ofícios, festejando, pela primeira vez, com um culto litúrgico do Coração de Maria em 1648, e do Coração de Jesus em 1672. Hoje, essas venerações fazem parte do calendário da Igreja.
Morreu em Caen, norte da França, no dia 19 de agosto de 1680, deixando uma obra escrita de grande valor teológico pela clareza e profundidade. Foi canonizado pelo papa Pio XII em 1925. A festa de são João Eudes comemora-se no dia de sua morte.
Conheça mais sobre São João Eudes
Um Homem que arriscou na misericórdia.
João Eudes nasceu em Ri (França), a 14 de novembro de 1601.
Filho de um casal de bons normandos e fervorosos cristãos, recebeu desde criança a formação que um lar com esse grau de excelência podia dar então. Uma infância muito normal, uma etapa de estudos bem completa no colégio dos Jesuítas, e um processo de discernimento espiritual que o levará a optar pelo sacerdócio na recentemente fundada Congregação do Oratório, do Cardeal de Bérulle. A partir daí se iniciou uma fecunda vida de missionário que o levará por muitos caminhos da França, fazendo-o entrar em contato com a dolorosa realidade de um país cristão em crise de fé e permitindo-lhe se converter em missionário e profeta da misericórdia.
João Eudes, discípulo tanto de Bérulle como de Francisco de Sales, abebera seu espírito em ambas correntes teológicas, e delas alimentou a coerente espiritualidade que dará sentido a sua vida inteira e nutrirá sua veia de escritor popular. Dessa dupla fonte se alimentou o riacho que começava a notar-se no jovem sacerdote oratoriano, que em breve se converterá em uma poderosa torrente espiritual. Ambas fundarão e estimularão seu espírito missionário.
Pe. Eudes parte de um princípio unificador: o cuidado e ocupação principal de todo batizado consiste em formar e estabelecer Jesus em nós, e fazer que aí Ele viva e reine. Porque ser cristão e ser santo é uma mesma coisa. Mas coloca sempre, mesmo de modo latente, este “leitmotiv” espiritual sobre a tela de fundo de uma misericórdia comprometida e eficaz. Encontramos aqui uma coerência radical entre vida concreta e doutrina espiritual, uma engrenagem perfeito entre a própria experiência existencial, o apostolado missionário, as fundações, a doutrina da misericórdia e a espiritualidade do Coração de Jesus e Maria.
Por isso, não é exagero afirmar que o eixo de todo seu projeto espiritual foi o conceito de misericórdia. Mesmo se explicitando de forma relativamente tardia em seus escritos, podemos dizer que ela marcou sua vida toda. Desde os inícios de seu ministério João Eudes sente, recebe e cumpre -afetiva, mas real e comprometidamente- esta misericórdia em sua própria vida e na dos demais. Ela dá unidade a sua ação apostólica, impulsiona-o constantemente para ir além da mera sensibilidade diante da desgraça e o encoraja a promover determinadas ações missionárias e fundações religiosas.
Evangelizado e evangelizador
Tinha aprendido a reconhecer em todas as partes a presença de Deus, inclusive na experiência concreta e em todos os acontecimento. Nessa época não se falava de sinais dos tempos, mas João Eudes os entendia e vivia plenamente. Para ele um desses sinais foi sem duvida aquela peste de Súez, em 1627. Então, o jovem sacerdote, que apenas acabava de superar uma longa e dolorosa enfermidade que praticamente o tinha inutilizado, decidiu ir em auxílio de quem mais o necessitava -os empestados, abandonados de todo recurso espiritual- para levar-lhes os sacramentos, sinais da misericórdia de Deus. Foi este seu primeiro encontro com os pobres, os pequenos, os abandonados. Três anos mais tarde, em Caen, repetir-se-á tão difícil experiência. Serão então mais fortes a caridade e o compromisso para com os irmãos sofredores que as razões de quem tentava dissuadi-lo do que parecia uma perigosa doidice.
Estas primeiras atividades que realizou como sacerdote e como missionário eram gestos que falavam da misericórdia e faziam a misericórdia. Gestos significativos que já eram missão, uma pregação silenciosa daquelas que louvava Paulo VI na EN8. Gestos que o marcaram e o colocaram para sempre no caminho que desce de Jerusalém a Jericó. Dai em diante sua presença missionária ao lado de qualquer Jesus que sofre irá preenchendo de realismo sua espiritualidade e seu ministério.
Todos os seus compromissos apostólicos terão relação profunda com essa experiência. O abismo de minhas misérias chama o abismo de suas misericórdias, exclama em seu Magnificat pessoal. Tendo experimentado, ele mesmo, a misericórdia de Deus em sua própria vida, quis agradecer por ela dedicando-se a pregá-la e transmiti-la. Os caminhos missionários da França conservam ainda a lembrança de seus passos. Desse fervor evangelizador, dessa paixão pelo Reino, surgiria aquele outro elemento chave de sua espiritualidade que foi a devoção ao Coração de Cristo, unido indissoluvelmente ao Coração de Maria. Como alguém tem escrito, João Eudes foi um homem de coração e um homem do Coração: nisto consiste sua máxima contribuição ao cristocentrismo da escola beruliana.
O caminho da misericórdia
Porque a história não fica na anedota. Apresentado-se um momento crítico em própria vida e história, João Eudes saberia arriscar definitivamente no caminho da misericórdia; e ao fazer assim, arriscaria pela santidade verdadeira. Pode ser dito que a misericórdia o fez missionário e o motivou a entregar sua vida inteira a um empenho que constituiu como que a coluna vertebral de seu ministério: desde 1627 a 1680, ano de sua morte, jamais soube o que é descanso. João Eudes seria, antes de tudo e por cima de tudo, um sacerdote missionário, como gostava de assinar suas cartas.
Esse incansável caminhar missionário -o anúncio da Boa notícia que é a presença da misericórdia na história dos homens-, não era se não uma verbalização daquela experiência íntima, inicial e continuada, da máxima misericórdia divina: evangelizar -reitera a seus eudistas- é anunciar ao homem, especialmente ao mais cheio de misérias -miserável- a boa notícia de que Deus o ama, que o leva em seu coração de Pai e está disposto a jogar tudo para salvá-lo..
O trato com as pessoas lhe tinha permitido conhecer bem de perto não só os vícios morais que pululavam em todos os recantos da sociedade senão também os profundos males que abatiam o Povo de Deus. Ele sabia bem quais eram as misérias dos miseráveis. Tinha sentido a dolorosa miséria humana e social das multidões, a ignorância religiosa dos que se diziam crentes e seu afastamento do autêntico compromisso cristão; tinha experimentado também a situação do clero, abatido pela ignorância, a pobreza material e sua falta de espírito apostólico. Aguçado por esta realidade, Pe. Eudes foi descobrindo seu próprio caminho “de Jerusalém a Jericó”. A paixão pelo homem – “as almas”, diz ele, com a linguagem de sua época- o devora:
“Se dependesse de mim, iria a Paris a gritar na Sorbone e demais colégios: “¡fogo, fogo!. Sim, o fogo do inferno está consumindo o universo. Venham senhores doutores, venham senhores bacharéis, venham senhores abades, venham todos os senhores eclesiásticos e ajudem a apagá-lo”.
Quando o zelo aperta
A partir desta perspectiva se entende melhor suas numerosas fundações. Porque ao estudar sua vida e sua obra descobrimos, cada vez melhor, como estas fundações constituíram, em quanto evangelização, autênticas obras de misericórdia, ou seja, maneiras concretas de expressar sua opção definitiva pela misericórdia divina.
Apelando a uma categoria moderna, podemos dizer que João Eudes também se deixou evangelizar “pelos pobres”, vale dizer, pelas prostitutas e os incontáveis homens e mulheres que vegetavam na morte devido a ninguém lhes ter falado da Vida. Foi essa experiência que ativou seu carisma de fundador. Bastaria recordar aquele episódio citado pelo Pe. Emile Georges, que opera nas raízes da ordem de N.S. da Caridade.
Pe. Eudes não era um fundador “profissional” mas um homem de Deus que ia respondendo, na medida de seus recursos, aos clamores da misericórdia, às necessidades concretas de sua época, que para ele representavam autênticas mensagens do Espírito. Era um homem que sabia ler a ação de Deus inclusive nos fracassos, que se deixava interpelar seriamente pelos sinais de seu tempo, e cujo maior desejo era fazer eficaz a misericórdia. Não existia em seus projetos nenhuma intenção moralizante: tinha de realizá-los, simplesmente, porque Deus misericordioso assim queria; eram uma conseqüência normal de seu seguimento de Cristo, e de sua atenção à misericórdia do Pai: para ele se tratava só de cristificar o ser humano, sobre tudo aqueles cuja imagem de Deus estava mais deteriorada pelo pecado ou pela miséria.
É precisamente em 1644, ano em que se consolidava na França o rigorismo jansenista, quando João Eudes funda a Ordem de N.S. da Caridade, coincidindo com uma tomada de consciência cada vez mais viva do que é essa misericórdia divina. Tem feito a descoberta, de uma maneira concreta, que Deus ama e, porque ama, salva perdoa. Sente-se chamado a ser pessoalmente instrumento desse amor salvador em um dos campos mais dramaticamente esquecidos da pastoral da época: a prostituição.
Também no nascimento da Congregação de Jesus e Maria (Eudistas) há uma experiência de misericórdia; lhe doía intensamente a Igreja, lhe doíam as pessoas que andavam “como ovelhas sem pastor”; e se deixou interpelar pelo amor de Deus que, em Jesus, vem “salvar o que estava perdido”. Expressão última e acabada da misericórdia do Pai. Se “uma pessoa vale mais que mil mundos”, é necessário que alguém se dedique de tempo completo a formar a quem deve salvá-la. Urgido por tão angustiantes convicções, decide abandonar o Oratório para fundar sua pequena congregação.
Formar o clero era só uma maneira de colocar-se no caminho da misericórdia que salva e que necessita de canais dignos dessa tarefa. Em uma carta ao Pe. Manoury, primeiro formador dos novos eudistas, Pe. Eudes se expressava:
“Cuide de formá-los no Espírito de Nosso Senhor, que é espírito de desprendimento e de renúncia a tudo e a si mesmo; espírito de submissão e abandono à divina vontade manifestada pelo evangelho e pelas regras da congregação…, espírito de puro amor a Deus…, espírito de devoção singular a Jesus e Maria…, espírito de amor à cruz de Jesus ou seja ao desprezo, à pobreza e ao sofrimento…, espírito de ódio e horror a todo pecado…, espírito de caridade fraterna e cordial ao próximo, aos da congregação, aos pobres…, espírito de amor, respeito e estima pela Igreja”.
Mestre da misericórdia
Porque nosso santo não se contenta com ser, ele mesmo, coerente; seu desejo é que todos os cristãos se deixem preencher por esse espírito da misericórdia divina, seu anseio é que todos os batizados, especialmente os sacerdotes, sejam também “missionários da misericórdia”. A paixão pelo reinado de Jesus nos corações dos homens, realmente o devora. Conhecendo bem a penosa situação, moral e espiritual, do clero e do povo cristão da época, percebe e sente em todo seu ser a urgência da evangelização e da formação de bons operários para levar adiante um serviço eficaz do evangelho. A essa dupla tarefa dedica o melhor de seus esforços.
Naquele mesmo ano de 1644, quando, por um lado, se consolida o jansenismo e, por outro, ele funda N. S. de a Caridade, Pe. Eudes conclui seus Conselhos aos confessores; trata-se de um curto escrito que resume aquele delicado sentido de caridade pastoral que o Vaticano II e, mais recentemente, João Paulo II, retomando uma densa herança patrística, tem apresentado como nota constitutiva do verdadeiro pastor segundo o Coração de Cristo. Ali João Eudes nos deixa uma de suas escassas confidências pessoais:
“Conheço muito bem alguém que tem sido escolhido pela divina misericórdia para trabalhar na conversão dos pecadores; encontrando-se perplexo sobre como devia conduzir-se com eles, se usar de bondade ou de rigor, se misturar os dois…, recorreu na oração à Santíssima Virgem, seu habitual refúgio. Antes que tivesse comunicado a alguém suas inquietações, a Mãe das Misericórdias lhe inspirou através de um mensageiro: quando pregares usa as armas poderosas e terríveis da Palavra de Deus para combater, destruir e esmagar o pecado nas pessoas, mas quando te encontrares com o pecador, fala-lhe com bondade, benignidade, paciência e caridade”.
Por isso, recomenda aos confessores acolher e tratar o penitente “com um coração verdadeiramente paternal, quer dizer, com uma grande cordialidade, benignidade e compaixão”, e incitá-lo à confiança. E explica:
“com entranhas de misericórdia e com o coração cheio de amor a quantos se apresentarem para a confissão, sem fazer acepção de pessoas nem agir com preferências, salvo quando se tratar de enfermos ou inválidos, de mulheres grávidas ou que estão criando seus filhos, daqueles que vêm de longe…”. “Se aparecer temeroso e com alguma desconfiança de obter o perdão de seus pecados, deve levantar-lhe o ânimo e fortalecê-lo, fazendo-lhe ver que Deus tem um grande desejo de perdoá-lo; que se alegra muito com a penitência dos grandes pecadores; que quanto maior é nossa miséria, mais glorificada é em nós a misericórdia de Deus; que Nosso Senhor tem orado a seu Pai pelos que o tem crucificado, para ensinar-nos que, mesmo sendo crucificado com nossas próprias mãos, perdoaria-nos muito espontaneamente se lhe pedíssemos”.
Neste ponto a gente se sente bem longe do rigorismo agostiniano e jansenista. Apelando a um lugar comum podemos afirmar que o “zelo pela salvação das almas” realmente o devorava. Esta expressão -que hoje é pouco aceita pois se entende melhor que o ser humano não é só alma e que Deus salva a pessoa toda- traduz bem a qualidade apostólica de santos como João Eudes. Sem considerar que a importância dada por ele ao compromisso concreto nos permite captar em seu pensamento uma intuição do que na linguagem bíblica significava a “alma”: não a parte espiritual em confronto com o corpo -o material- mas a identidade total do homem, matéria e espírito, tal como tem saído das mãos de Deus.
Encarnados com o Encarnado
Está claro que existe uma significativa distância cultural entre o século XVII francês e nossa época, em quanto ao sentido da palavra misericórdia. Convém precisar esta diferença na hora de apresentar a mensagem eudiana se queremos que seja captada a plenitude pelos homens de nosso tempo. Hoje o seu significado se tem empobrecido até tal ponto que parece ser um simples sinônimo de pena ou de piedade para com o culpável.
Para João Eudes, de modo diferente, misericórdia era mansidão, clemência, paciência e compreensão frente à falha do outro, mas sobretudo amor, piedade, generosidade. A misericórdia era zelo pela causa do homem, um intenso sentimento de piedade, generosidade; não mera comiseração ante o sofrimento do outro, mas expressão plena e comprometida de um amor que trata de levar a todos uma salvação eficaz, concreta, mas ao estilo de Deus. Assim o expressaria em um texto célebre, sobre o qual voltamos reiteradamente:
“Três coisas se requerem para que haja misericórdia. A primeira é ter compaixão da miséria do outro, pois misericordioso é quem leva em seu coração as misérias dos miseráveis. A segunda consiste em ter uma vontade decidida de socorrê-los em suas misérias. A terceira é passar da vontade à ação”.
Como veremos em detalhe depois, João Eudes apóia sua doutrina sobre a misericórdia naquele profundo sentido da encarnação de Deus tão caro aos mestres da espiritualidade beruliana. Exclama: “nosso Redentor se encarnou para exercer deste modo sua misericórdia conosco”, quer dizer, para passar da misericórdia do Coração de Deus à misericórdia das ações salvadoras.
A mensagem resulta evidente: Jesus personifica a misericórdia divina, a misericórdia ativa e viva de um Deus que vem salvar os mal-feridos do caminho a Jericó. Na pessoa de Jesus, Deus se aproxima gratuitamente de quem está em desgraça e é incapaz de libertar-se a si mesmo. Jesus é o Coração humano de Deus – belo achado teológico eudiano – que tem assumido todas as nossas misérias para libertar-nos delas.
É essa mesma atitude – “levar no coração” – que Deus nos pede diante do próximo. João Eudes reitera, sob diversas formas, ao longo de suas obras: não há outra forma de viver o amor misericordioso de Jesus. Ela traduz e resume uma experiência fundamental que testemunha tudo mais: ser cristão é ser capaz de abrir-se suficientemente, desde o mais profundo, para acolher na própria vida o “outro”: Deus, próximo, e, particularmente, quem experimenta qualquer tipo de miséria. Um coração autenticamente cristão é aquele que, sobretudo, sabe receber e acolher um Deus essencialmente gratuito, mas que, com Deus e como Deus, sabe acolher também as misérias dos demais de tal modo que o impressionem, o habitem no mais profundo de seu ser, e o dinamizem para uma ação comprometida e coerente.
Nas mãos da Graça
Por isso, a nível de meios, longe de todo delírio prometeico e de toda pretensão voluntarista, João Eudes entende que nessa tarefa, incômoda e difícil, o primeiro é a graça de Deus, pois tudo depende dele que é quem age em nós:
“O que somos nós, meus irmãos, para que Deus nos empregue em tão sublimes ministérios? Para se dignar a escolher a nós, miseráveis pecadores como instrumentos de suas divinas misericórdias?”.
Daí sua insistência na oração constante. Porém, longe de qualquer delírio pietista, sublinha também a necessidade de “pôr sempre toda a carne na grelha”: é necessário entregar-se à tarefa, trabalhando como se tudo dependesse de nós, trabalhando de todo coração, pelo exemplo -testemunho- e pela eficácia da ação. Temos de deixar que, diante dos problemas que abatem o próximo, nosso coração se estremeça de amor até o ponto de não restar outro remédio que passar à ação em busca de alívio. Trata-se de amar até a dor. Porque o dar da verdadeira misericórdia não é assunto de simples quantidade, mas de qualidade, de uma atitude vital com a qual partilha com os demais. O importante não é dar coisas mas dar a si mesmo.
Para nosso homem esta é a forma privilegiada de glorificar a Deus. Como missionário, como formador de sacerdotes e como fundador de Institutos religiosos, soube sublinhar a união estreita que existe entre a misericórdia de Deus, nosso compromisso cristão e a virtude de religião: o autêntico culto deriva em zelo apostólico e este se expressa com sinais de misericórdia porque -afirma- anunciar o evangelho é simplesmente anunciar a misericórdia de Deus, e este anúncio tem de fazê-lo com palavras claras e obras coerentes. Evangelizar é anunciar aos “miseráveis” a boa notícia de que Deus os ama, que os “leva em seu coração”; para isto o missionário só tem um caminho: levá-los em seu próprio coração. Deste modo o Pai é glorificado. Por isso se atreve a exclamar:
“Nada desejo pessoalmente, mas se Deus me exigisse expressar meu querer, escolheria seguir vivendo indefinidamente, para ajudar a salvar as almas”.
A partir desta convicção, João Eudes o místico se faz ativo, o contemplativo se converte em missionário, testemunha e fundador. Porque se trata de “passar da vontade ao fato”. Não bastam os belos sentimentos e as formosas palavras. Deve-se passar do ‘levar as misérias alheias no coração”, aos efeitos concretos da misericórdia. Escutando-o evocamos Tiago: uma fé sem obras é uma fé morta. Ele entendia bem que estamos radicalmente a serviço da misericórdia de Deus, que somos os verdadeiros anjos de Deus: somos as mãos, os pés, o coração do Deus salvador, porque “Deus não tem mais mãos que as nossas”, como falara lindamente Teresa d’Ávila.
Em resumo, evangelização, zelo e misericórdia, são as três dimensões, fundamentais e inter-relacionadas, de seu pensamento e de sua ação ministerial inteira. Nesta perspectiva orienta o ministério do missionário.
Espiritualidade da encarnação
Para tanto, não podemos acusar o pensamento eudiano de espiritualista, como se não lhe importassem senão as coisas espirituais, esquecendo as necessidades materiais do povo. De fato ele estava muito consciente destas misérias humanas e sociais, mas as via como uma expressão, um sintoma e uma conseqüência da miséria mais profunda e radical e a raiz de todas as demais misérias, que é o pecado. Por isso, a “mais divina de todas as coisas divinas é salvação das almas”.
Como normando sensível, prático e eficiente, ensina que é a través de nós que o Cristo quer realizar sua misericórdia salvadora. Mesmo vivendo em um denso mundo espiritual, entendia que a misericórdia de Deus não é uma noção abstrata, mas a presença real, muito real, de Deus encarnado no mundo dos homens, nos acontecimentos cotidianos. André Pioger sublinha como seus contemporâneos se sentiam comovidos por esta atitude testemunhal do pequeno grande santo:
“Inclusive fora de Caen, João Eudes se interessa vivamente pelos enfermos. Quando realiza a missão nas grandes cidades estabelece casas de refúgio para os pobres e os enfermos; acomoda os idosos e os que estão em má situação… Em Autun, em 1647, faz reparar o hospital Dos Transeuntes e decide aa construção de um novo para os enfermos e para alojar ali os pobres médicos… Onde não cria hospitais visita sempre os que já existiam… Porque não quer só socorrer materialmente mas dedicar-se a cultivar as almas…”.
Obviamente, João Eudes vive as idéias de sua época. Por isso sua concepção da missão, que obedecia a uma mentalidade de nova cristandade, difere de outras mais modernas, nas que se enfatiza mais o compromisso estrutural que as “obras de misericórdia”. Não podemos pedir a um homem do s. XVII, por mais santo que fosse, que tivesse as idéias de um missionário post-Vaticano II. O importante é ver como ele, ao seu modo, não separava jamais aquelas quatro dimensões da missão, que citava Paulo VI na Evangelii Nuntiandi: o compromisso, o anúncio, o testemunho e a denúncia.
Não fazia do trabalho pelos pobres um simples compromisso social, porque o dele era servir ao Reinado de Jesus nos homens, também não convertia sua pregação em um desencarnado anúncio de verdades abstratas ou de “eslogans” ideológicos. Por outra parte, aparece clara sua convicção de que não se tratava de mais um trabalho social, que podia favorecer a evangelização, de uma pre-evangelização como se diz às vezes, mas de uma verdadeira evangelização dado que sua finalidade era a conversão a Cristo. E quando tinha que enfrentar os responsáveis de qualquer sofrimento injusto, mesmo que fosse o rei ou a rainha, o fazia com clareza, valentia e misericórdia.
Sua própria concepção da grandeza do ministério sacerdotal não obedecia a critérios de poder ou grandeza humana -esses que hoje tanto chocam à teologia moderna- mas à convicção de que o sacerdote, enquanto tal, tem, como tarefa quase exclusiva, ser missionário e tesoureiro do Pai das misericórdias. Por isso sentia a urgência de contagiar os irmãos sacerdotes com ardor inflamado de sua própria experiência missionária. Escreve, por exemplo, durante a missão de Vatesville:
“São maravilhosos os frutos que recolhem os confessores. Mas o que nos aflige é que nem a quarta parte se poderá confessar. Estamos abrumados. (…) O que estão fazendo em Paris tantos doutores e bacharéis, enquanto as almas perecem por milhares, porque ninguém lhes estende uma mão para retirá-las da perdição?”.
A dramática experiência de sua própria vida, somada à constatação dos ingentes problemas que viviam o mundo e a Igreja, alimentaram sem dúvida seu pessimismo diante das reais possibilidades do homem. Mesmo assim, soube propor e manter uma proposta de vida cristã sempre equilibrada e sã, ainda que exigente. Por isso, a João Eudes se pode aplicar o que ele mesmo escrevera de Maria: contemplou, amou e levou em seu coração o Coração de Cristo, até fazer-se um só coração com ele.
Também ele se deixou habitar e dinamizar pelo Coração de Deus, que é Cristo. Foi este Coração que o conduziu até seus irmãos e irmãs necessitados; foi este Coração que o lançou, sem descanso, pelos caminhos da missão; e foi este mesmo coração que lhe permitiu posicionar seu carisma e sua missão entre a miséria do homem e a misericórdia do Deus-Amor que quer que todo homem se salve.
O preço era a cruz
Parecia inevitável que por essa opção devesse pagar um alto preço em lutas dolorosas, dentro daquele contexto histórico tão complexo; e o pagou com inteireza, galhardia e equanimidade:
“Se temos de suportar alguma moléstia ou fadiga não é para desanimar-nos ou queixar-nos por tão pouca coisa. Inclusive se tivéssemos de enfrentar a morte, não deveríamos acaso considerar-nos imensamente afortunados?”.
Seu abandono do Oratório lhe trouxe a censura de muitos de seus antigos irmãos, e sua luta contra o rigor desmedido do jansenismo lhe acarretou tormentas e horas muito difíceis. Mas ele não recusa a cruz, demonstrando assim até que ponto seu arriscar-se pela misericórdia era autêntico e comprometido:
“A divina misericórdia me tem feito passar por numerosas tribulações, este tem sido um dos mais insignes favores que dela tenho recebido, porque me têm sido extremamente úteis, e Deus me tem livrado sempre delas”.
Ainda mais, para ele essas perseguições não eram simples cruz mas o posicionavam no caminho da misericórdia divina:
“Depois de uma desolação de seis anos, o Pai das misericórdias e Deus de todo consolo se tem dignado enxugar minhas lágrimas e mudar minha amargura em regozijo incrível. Seja por isso louvado e bendito eternamente”.
Estava consciente, assim escreveria mais tarde, de que não há redenção sem sangue; por isso via no martírio “o ápice, a perfeição e culminância da vida cristã… o milagre mais insigne que Deus realiza nos cristãos…, o favor mais destacável que Cristo faz aos que ama… Nos mártires resplandece com preferência o poder admirável de seu divino amor…”.
Coerentemente, pediria com insistência essa graça; testemunho disso é o formoso “Voto de Martírio” que nos legou. Não
lhe foi concedida tal graça, mas recebeu outra talvez maior: tornar-se missionário e profeta da misericórdia de Deus. Por isso, no entardecer de sua vida pôde exclamar:
“Mesmo estando já velho (74 anos), prego quase todos os dias, confesso, e atendo infinidade de assuntos. Todas estas fadigas nada custam quando se tem o consolo de ver como os povos correspondem ao que se faz por sua salvação”.
Dessa maneira, João Eudes se revela como um autêntico profeta da misericórdia, em uma época em que se impunham tantas correntes rigoristas. A partir dessa paixão que o devorava delineou um caminho de santidade baseado na mística do amor comprometido. Nele, a missão e o ministério aparecem como as duas faces da existência cristã, um laço concreto e visível entre o amor de Deus e a miséria humana. Isso sintetiza todo seu projeto espiritual e missionário.
Isso seria assim até aquela tarde do 19 de agosto de 1680, quando expirava repetindo uma outra vez: “Jesus é meu todo!”
Fotos: santiebeati.it | Fonte: eudistes.org
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