SANTO DO DIA – 10 DE MAIO – SÃO DAMIÃO DE MOLOKAI
Religioso do Sagrado Coração (1840-1889)
Josef de Veuster-Wouters nasceu no dia 3 de janeiro de 1840, numa pequena cidade ao norte de Bruxelas, na Bélgica. Aos dezenove anos de idade, entra para a Ordem dos Padres do Sagrado Coração e toma o nome de Damião. Em seguida, é enviado para terminar seus estudos num colégio teológico em Paris.
A vida de Damião começou a mudar quando completou vinte e um anos de idade. Um bispo do Havaí, arquipélago do Pacífico, estava em Paris, onde ministrava algumas palestras e pretendia conseguir missionários para o local. Ele expunha os problemas daquela região e, especialmente, dos doentes de lepra, que eram exilados e abandonados numa ilha chamada Molokai, por determinação do governo.
Damião logo se interessou e se colocou à disposição para ir como missionário à ilha. Alguns fatos antecederam a sua ida. Uma epidemia de febre tifóide atingiu o colégio e seu irmão caiu doente. Damião ainda não era sacerdote, mas estava disposto a insistir que o aceitassem na missão rumo a Molokai. Escreveu uma carta ao superior da Ordem do Sagrado Coração, que, inspirado por Deus, permitiu a sua partida. Assim, em 1863 Damião embarcava para o Havaí, após ser ordenado sacerdote.
Chegando ao arquipélago, Damião logo se colocou a par da situação. A região recebera imigrantes chineses e com eles a lepra. Em 1865, temendo a disseminação da doença, o governo local decidiu isolar os doentes na ilha de Molokai. Nessa ilha existia uma península cujo acesso era impossível, exceto pelo mar. Assim, aquela península, chamada Kalauapa, tornou-se a prisão dos leprosos.
Para lá se dirigiu Damião, junto de três missionários que iriam revezar os cuidados com os leprosos. Os leprosos não tinham como trabalhar, roubavam-se entre si e matavam-se por um punhado de arroz. Damião sabia que ficaria ali para sempre, pois grande era o seu coração.
Naquele local abandonado, o padre começou a trabalhar. O primeiro passo foi recuperar o cemitério e enterrar os mortos. Com frequência ia à capital, comprar faixas, remédios, lençóis e roupas para todos. Nesse meio tempo, escrevia para o jornal local, contando os terrores da ilha de Molokai. Essas notícias se espalharam e abalaram o mundo, todo tipo de ajuda humanitária começou a surgir. Um médico que contraíra a lepra ao cuidar dos doentes ouviu falar de Damião e viajou para a ilha a fim de ajudar.
No tempo que passou na ilha, Damião construiu uma igrejinha de alvenaria, onde passou a celebrar as missas. Também construiu um pequeno hospital, onde, ele e o médico, cuidavam dos doentes mais graves. Dois aquedutos completavam a estrutura sanitária tão necessária à vida daquele povoado. Porém, a obra de Damião abrangeu algo mais do que a melhoria física do local, ele trouxe nova esperança e alívio para os doentes. Já era chamado apóstolo dos leprosos.
Numa noite de 1885, Damião colocou o pé esquerdo numa bacia com água muito quente. Percebeu que tinha contraído a lepra, pois não sentiu dor alguma. Havia passado cerca de dez anos desde que ele chegou à ilha e, milagrosamente, não havia contraído a doença até então. Com o passar do tempo, a doença o tomou por inteiro.
O doutor já havia morrido, assim como muitos dos amigos, quando, em 15 de abril de 1889, padre Damião de Veuster morreu. Em 1936, seu corpo foi transladado para a Bélgica, onde recebeu os solenes funerais de Estado. Em 1995, padre Damião de Molokai foi beatificado pelo papa João Paulo II e sua festa, designada para o dia 10 de maio. O Papa Bento XVI o canonizou em 11 de outubro de 2009.
Conheça mais sobre São Damião de Molokai
Com a presença do Rei Alberto II da Bélgica e de sua esposa, a rainha Paola Ruffo de Calábria, o Santo Padre Bento XVI canonizou o Pe. Damião de Molokai, Apóstolo dos Leprosos. Nascido em Flandres, na Bélgica, o Pe. Damião abraçou a vida religiosa, tendo se radicado no Havaí onde, cumprindo a missão que lhe foi designada por seus superiores, exerceu frutífero ministério em uma colônia de leprosos, tornando-se também um deles. Outros quatro bem-aventurados também foram canonizados na mesma ocasião, tendo o Papa feito um convite aos que se dirigiram a Roma para a cerimônia: “Queridos irmãos e irmãs, vamos dar graças ao Senhor pelo dom da santidade que hoje resplandece na Igreja com singular beleza. Enquanto com afeto saúdo cada um de vós, cardeais, bispos, autoridades civis e militares, sacerdotes, religiosos e religiosas, fiéis leigos de várias nacionalidades que participam desta solene Celebração Eucarística, gostaria de dirigir a todos o convite a deixar-se atrair pelos exemplos luminosos desses santos, a deixar-se guiar pelos ensinamentos deles, para que toda a nossa existência se torne um canto de louvor ao amor de Deus“.
“Adeus, mamãe; até o céu“: tais foram as palavras de despedida do jovem religioso Damião de Veuster, ao aproveitar um transporte que inesperadamente surgiu no caminho que trilhava a pé após fazer uma peregrinação ao santuário mariano de Montaigu acompanhado de sua mãe e de uma cunhada. Era o início de sua viagem sem retorno para o longínquo Reino do Havaí.
Na verdade, quem deveria ir para o Havaí em missão religiosa era seu irmão mais velho Panfílio, que o precedeu ingressando na Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria e da Adoração ao Santíssimo Sacramento do Altar. A viagem de Panfílio fora cancelada por motivo de doença e assim Damião, que almejava ser missionário, aproveitou-se disso e pediu ao superior que o permitisse partir como substituto.
Nascimento, infância e adolescência
Seu nome de nascença era Jozef (carinhosamente reduzido para Jef, na intimidade), tendo vindo ao mundo em 3 de janeiro de 1840, em Tremelo, na região flamenga da Bélgica. Batizado no mesmo dia em que nasceu, era o penúltimo de uma série de oito filhos do casal Jan Frans e Catherine, que trabalhavam na área rural. A feliz família – da qual alguns membros demonstraram vocação religiosa – guardava respeitosamente os domingos e dias santos, nos quais nem mesmo a costura era permitida: missa pela manhã, vésperas à tarde, e também descanso e recolhimento. Às refeições a oração era conduzida pela zelosa mãe, em latim.
A vocação religiosa pouco a pouco desabrochava no pequeno Jef. Certa vez ele e seus irmãos Paulina e Augusto resolveram passar um dia inteiro em oração e penitência na solidão de um bosque, como anacoretas (nem mesmo lançaram mão do lanche que haviam levado). Mas foi na adolescência que o chamado tornou-se cada vez mais forte, apesar da vontade contrária de seus pais, a quem chegou a dizer: “deixem-me entrar no convento, ou Deus os castigará“.
Recebe o hábito da Congregação dos Sagrados Corações
Aos dezoito anos a vocação religiosa já estava profundamente enraizada na sua alma. Em janeiro de 1859, acompanhando o pai em uma visita a seu irmão Augusto (que já ingressara na Congregação dos Sagrados Corações), em Louvain, foi deixado por algumas horas no convento enquanto o Sr. Franz tratava de outros assuntos na cidade, mas quando este passou pela casa religiosa para buscá-lo, Jozef pediu para ficar, pois isso evitaria a dor das despedidas no lar: a permissão foi então dada pelo pai, que já pressentia que isso iria acontecer. Em menos de dois meses recebeu o hábito religioso, passando a chamar-se Damião, iniciando assim o noviciado (que na ocasião se estendia por 18 meses). Logo demonstrou grande habilidade no aprendizado do latim (a se ressaltar: ele já houvera sido recusado em um seminário ao qual se dirigiu por sua própria iniciativa, sob alegação de ser rude e de desconhecer outros idiomas além do flamengo, sua língua natal).
Vivendo em ambiente religioso, surgiu em Damião a vocação para missionário, e passou ele a rezar diariamente nessa intenção junto à figura de São Francisco Xavier, apóstolo da Índia, pintada em uma janela. Posteriormente, quando ordenado presbítero, passou a usar as palavras “sacerdote missionário” após sua assinatura, hábito que manteve por toda a vida, assim definindo-se.
Protagonista de um simbólico funeral
Findo o noviciado, era o momento dos solenes votos perpétuos de pobreza, castidade e obediência. A cerimônia deu-se em 7 de outubro de 1860, na Casa principal da Congregação na Rua de Picpus, em Paris (endereço do qual os religiosos herdaram uma de suas designações populares: “padres de Picpus“). Após ouvir as palavras dirigidas pelo superior, Damião renunciou a qualquer propriedade pessoal, à constituição de família carnal, e aos seus destinos, com as seguintes palavras: “eu, Damião, seguindo as constituições, estatutos e regras aprovados e confirmados pela Santa Sé Apostólica, faço para sempre, entre vossas mãos, meu reverendíssimo Pai, voto de pobreza, de castidade e de obediência como irmão da Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, ao serviço dos quais quero viver e morrer. Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém“. Teve então estendido sobre si um tecido mortuário sustentado por quatro religiosos professos, enquanto outros quatro portavam velas acesas caracterizando aquele momento como um enterro: era cantado o hino fúnebre Miserere, feita a aspersão do “defunto” com água benta, enquanto em voz baixa era recitado o Pai Nosso e algumas outras preces, ao fim das quais aquela “morte” era selada com a oração: “Deus eterno e todo poderoso, que ordenais que, mortos para o mundo, vivamos em Cristo, conduzi vossos servidores pelo caminho da salvação eterna; que suas vidas sejam escondidas em Cristo para que, recebendo-O de Vós, desejem o que Vos agrade e o cumpram com todas as suas forças“, o que se seguia do alegre cântico do Te Deum, solene hino de ação de graças.
Mudança de rumo: sacerdote missionário no longínquo oriente
Ao contrário do irmão mais velho Panfílio, Damião não tinha inicialmente esperança de se tornar sacerdote: seus estudos secundários se reduziam a poucos meses, e só lhe sobravam duas opções: irmão converso e irmão de coro. Os irmãos conversos podiam partir em missões, sendo geralmente destinados a construções de capelas ou residências para os missionários, e os irmãos de coro atuavam como encarregados da capela e da sacristia do convento, e por vezes ajudavam em algumas atividades nas escolas da congregação. Mas os superiores perceberam ser Damião intelectualmente dotado, e assim o permitiram preparar-se para o sacerdócio, tendo cursado um ano de filosofia em Paris, quando também estudou latim e grego além de aprimorar o idioma francês; depois foi enviado de volta a Louvain, na Bélgica, para estudar teologia, o que fez por dois anos.
A dor pela doença que acometeu seu irmão Panfílio, destinado inicialmente a ser missionário no Havaí, logo se transformou para Damião em alegria, pois teve resposta afirmativa ao pedido de permissão para substituí-lo na feliz viagem que não conheceria retorno: após cinco meses singrando os mares, desembarcou o jovem religioso em Honolulu, capital do que então era um reino. O grupo era formado por um sacerdote, três clérigos, dois irmãos conversos, e dez irmãs. As irmãs ocupavam um compartimento ao lado do que foi destinado aos religiosos do sexo masculino, mas nenhuma comunicação era feita entre eles a não ser por intermédio do superior que os acompanhava, o Pe. Chrétien, detalhe que Damião fez questão de inserir em carta remetida aos pais durante a viagem.
Dormindo em beliches, os religiosos viajavam em um verdadeiro convento flutuante: havia momentos destinados às orações, aos estudos e às distrações, sob as ordens de um zeloso padre superior, e, quando o vento e o mar se acalmavam, era celebrada a Santa Missa a bordo. Em nenhum momento as perturbações orgânicas próprias às viagens marítimas foram motivo de queixas nas missivas que Damião remetia aos familiares, mas – ao contrário – suas palavras eram como essas: “em parte se deve a vossas fervorosas orações, queridíssimos pais, que tenhamos feito uma feliz travessia, pois vos asseguro que a Divina Providência nos protegeu visivelmente durante toda a nossa viagem; várias vezes, sobretudo nos lugares perigosos, sentimos o socorro de nosso divino Salvador, que prometeu permanecer sempre com seus apóstolos e seus missionários até o fim dos tempos“. E a viagem marítima encerrou-se no dia da festividade de São José (19 de março de 1864), no porto de Honolulu: recebidos pelo superior da missão, Pe. Modesto Favens, os viajantes foram levados à catedral para a celebração de uma Missa, seguida de um Te Deum.
No Havaí, após breve passagem pelo subdiaconato e diaconato, Damião foi ordenado presbítero em 21 de maio do mesmo ano, na Catedral de Nossa Senhora da Paz. “Como eu tremia ao subir pela primeira vez ao altar – escreveu ao superior geral da Congregação – como estava emocionado meu coração ao dizer pela primeira vez ao Verbo que descesse às minhas mãos; que afetos então sobrenaturais e diferentes para mim ali se formavam ao distribuir, em minha primeira missa, o Pão da Vida a 150 ou 200 pessoas, das quais muitas provavelmente se haviam inclinado freqüentemente ante seus antigos ídolos e que agora, totalmente vestidas de branco, se aproximavam com tanta modéstia e respeito à Santa Mesa“.
Ministério sacerdotal no Havaí
Iniciou-se então a vida de sacerdote missionário para Damião, sob as ordens de seu superior religioso e do vigário apostólico (Pe. Modesto Favens e Mons. Louis-Desiré Maigret, respectivamente, ambos pertencentes à mesma família religiosa: Sagrados Corações). Poucos dias após ser ordenado o Pe. Damião foi enviado à Ilha Grande do arquipélago, onde passou a exercer o ministério. As distâncias que tinha de percorrer eram muito grandes, o que o levou a enfrentar dificuldades para a confissão freqüente (chegou a apelar a um artigo da regra que proibia formalmente que um missionário estivesse só, em carta ao superior geral). Incansavelmente, ano após ano, construía capelas, além de distribuir os sacramentos, ensinar nas escolas, cuidar de doentes, pregar ao povo, e assim anunciar o Evangelho.
Em 4 de maio de 1873, em meio a outros irmãos, o vigário apostólico (Mons. Maigret, bispo) pediu voluntários para se revezarem dando assistência aos leprosos na ilha de Molokai: alguns se apresentaram, sendo o Pe. Damião escolhido para ser o primeiro de uma alternância que não ocorreu, pois o encargo tornou-se definitivo. Alguns meses depois dirá, em carta a um irmão: “tendo já passado sob o pano mortuário no dia de meus votos, acreditei ser meu dever oferecer-me a Sua Grandeza [o bispo], que não teve a crueldade, como ele dizia, de ordenar tal sacrifício“. O próprio bispo (vigário apostólico), Mons. Maigret, acompanhou o novo pastor a Molokai, para apresentá-lo às ovelhas que que a ele eram confiadas.
Leprosário insular
A lepra (hanseníase) surgira no Reino do Havaí em 1840, como conseqüência da imigração, sendo naquela época incurável, e considerada muito contagiosa. O isolamento era a única solução encontrada pelas autoridades para a terrível enfermidade que continuava a desafiar a medicina. Os leprosos – várias centenas – eram confinados na ilha de Molokai, a quinta em extensão territorial do arquipélago, mais precisamente em uma península envolvida pelo oceano e isolada do restante do território por uma barreira montanhosa íngreme. Os enfermos que ali moravam podiam ser acompanhados por parentes, mas isso era uma exceção, pois em sua maior parte eram abandonados e rejeitados. Havia medidas governamentais para apoio aos que ali estavam confinados, como a construção de um pequeno hospital, alimentos e algumas roupas, e a visita eventual de um médico, mas tudo era rudimentar e muito aquém das necessidades. Os óbitos eram freqüentes – um a duoi por dia – e o próprio Pe. Damião deu o exemplo, sepultando os cadáveres que por vezes não tinham o privilégio de gozar dessa atitude de respeito aos mortos.
Os habitantes dividam-se em dois povoados: Kalawao e Kalaupapa. As moradias eram em geral muito precárias, por vezes feitas com pedras ou vegetais (até mesmo de cana-de-açúcar), com cobertura de folhas. A promiscuidade entre os pobres leprosos imperava, sem distinção de idade ou sexo. Não se podia falar propriamente em higiene, pois a água era obtida de fontes longínquas, conduzida em toscos recipientes transportados nas mãos. Os maus odores exalados das feridas e dos dejetos eram especialmente nauseantem, sendo mesmo insuportáveis para um recém-chegado: o Pe. Damião chegou a deslocar-se rapidamente para fora de certos ambientes e assim evitar ocorrências mais desagradáveis que não poderia controlar, como se pode perceber nesse registro: “mais de uma vez, cumprindo junto a eles meus deveres sacerdotais, me vi forçado não somente a tampar as narinas mas inclusive correr para fora a fim de respirar ar puro“. Escreveria ele, posteriormente, que o cachimbo que passou a usar atenuava em seu organismo os efeitos de tais emanações, pois o odor do tabaco, ao impregnar suas roupas, atuava como uma fragância dissimulando as impregnações infectas.
Ao superior geral da congregação, o Pe. Damião escreveu em agosto de 1873: “eis-me aqui, reverendíssimo padre, em meio a meus queridos leprosos. São muito hediondos de ver, porém têm uma alma resgatada pelo preço do sangue adorável de nosso divino Salvador. Ele também, em Seu divino amor, consolou os leprosos. Se eu não os posso curar como Ele, ao menos os posso consolar, e pelo santo ministério que Sua bondade me confiou espero que muitos entre eles, purificados da lepra da alma, apresentem-se ao Seu tribunal em estado de entrar na sociedade dos bem-aventurados“. Diz também que “acabo de fazer um pedido a Sua Grandeza [o bispo] para ampliar a capela. O odor infecto que emana de seus corpos e de suas feridas exigiria uma igreja grande para tornar o culto menos penoso. Algumas vezes me era difícil resistir durante a santa missa e no sermão. É como o ‘já cheira mal’ de São Lázaro. Enfim: Nosso Senhor suportou isso, e eu também o posso. Oxalá pudesse conseguir, por esse sacrifício, a ressurreição espiritual dos que, entre eles, ainda não saíram da tumba do pecado para viver a vida de graça que o bom Deus a eles oferece todos os dias“.
Mãos à obra
Várias capelas foram construídas por iniciativa do Pe. Damião, tendo ele constituído um coro e uma banda de música, que passaram a atuar convenientemente nas missas, nas procissões e nos funerais, e até mesmo nas recepções aos visitantes mais ilustres. Procurava demonstrar benquerença para com todos, participando de suas refeições, compartilhando seu cachimbo com outros homens, e até brincando com as crianças. Além disso, todos eram bem-vindos em sua casa. Mesmo antes de contrair a doença ali imperante, o Pe. Damião se inseriu entre eles, pois ao dirigir a palavra aos que ouviam suas homilias dizia: “nós, leprosos“, mesmo sem saber que um dia tal expressão se tornaria real.
Em poucos anos o Pe. Damião fez florescer uma autêntica comunidade, bem oposta ao que encontrou quando chegou àquele “cemitério vivo”: os moradores constituíam, quando ele ali aportou, uma verdadeira selva humana. Eis suas palavras extraídas de um relatório escrito em 1886: “à chegada dos novos leprosos, os antigos se apressavam a incutir neles a falsa máxima de que ‘neste lugar já não há lei’. Durante muito tempo me vi obrigado a combatê-la, vendo que se aplicava o mesmo às leis humanas e às divinas. Em conseqüência dessa teoria ímpia, a maioria dos solteiros, e dos casados que estavam separados de seus cônjuges pela lepra, viviam amontoados sem distinção de sexo. Muitas mulheres eram obrigadas a prostituir-se para conseguir amigos que as ajudassem durante sua doença. As crianças, quando fortes, eram empregadas como serventes. E quando a lepra havia progredido, tais mulheres e crianças eram expulsas da casa para buscar um abrigo em qualquer lugar. Não era raro encontrá-las atrás de uma cerca esperando que a chegada da morte viesse pôr fim a seus sofrimentos, ou que uma mão compassiva ou contratada os transportasse ao hospital“. Acrescenta o Pe. Damião, no mesmo documento: “como muitos leprosos morriam, meu dever sacerdotal me oferecia amiúde a ocasião de visitá-los em suas cabanas e, ainda que minhas exortações se dirigissem principalmente aos moribundos, balançavam freqüentemente as orelhas dos pecadores públicos, os quais pouco a pouco tomaram conhecimento das conseqüências de suas más condutas e começavam a se arrepender. A esperança do perdão de um Salvador misericordioso começava a reforma de sua má vida (…). Um meio dos mais eficazes para destruir a imoralidade tem sido a permissão para casar-se, dada aos leprosos não impedidos por um matrimonio anterior (…). Uma grande bondade para com todos, um terno amor para com os necessitados, uma doce compaixão para com os doentes e moribundos, juntamente com uma sólida pregação a meus ouvintes, esse tem sido o procedimento constante do qual me tenho servido para introduzir os bons costumes entre os leprosos“.
Sofrimentos
Um sofrimento que particularmente atormentou o Pe. Damião foi a dificuldade para fazer a confissão freqüente. Nos cinco primeiros anos o isolamento da colônia de leprosos era total, por ordem do governo. Por ocasião de uma visita do superior provincial – o Pe. Modesto Favens – este foi impedido de desembarcar, limitando-se a se inclinar sobre a amurada do navio para ouvir as acusações do rigoroso penitente que se aproximara em uma canoa, feitas em voz alta por estar proibido de subir a bordo a fim de evitar contágio.
Os anos se passaram em meio a frutífero apostolado, mas o sacrifício foi aceito: a hanseníase tomou pouco a pouco o robusto organismo do Pe. Damião. Manchas foram surgindo na pele, tumorações foram se desenvolvendo em várias partes do corpo, a sensibilidade começou a desaparecer, mas naquela época o diagnóstico médico não era tão fácil e rápido como nos dias atuais. A certeza surgiu em janeiro de 1885 quando, após uma fatigante caminhada para o exercício do ministério, pôs o pé em uma vasilha contendo água escaldante pensando ser morna, e não sentiu incômodo algum: perdera a sensibilidade térmica, o que indicava estar leproso. Aos familiares, diz que “trato de levar minha cruz com alegria, como Nosso Senhor Jesus Cristo“. Ao Pe. Léonor Fuesnel, então seu superior provincial, o Pe. Damião faz um pedido: “pois bem, meu reverendo padre, já não tenho dúvidas, sou leproso; que o bom Deus seja bendito! Não tenha muita pena de mim, pois estou perfeitamente resignado com minha sorte. Não peço mais que uma graça: suplicai a nosso Muito Reverendo Padre que envie algum [sacerdote] que possa uma vez ao mês descer até nossa tumba para confessar-me e, no restante do tempo, ocupar-se das capelas do outro lado da ilha, onde não há doentes“.
Em uma carta dirigida a um escritor que visitara aquela colônia de leprosos, o Pe. Damião escreveu em outubro de 1885: “Desde o mês de março passado meu correligionário, o Pe. Alberto, deixou Molokai e o arquipélago para regressar a Tahiti. Desde então sou o único sacerdote em Molokai e tenho a fama de estar atacado eu próprio pela terrível doença. Os micróbios da lepra se instalaram finalmente na minha perna esquerda e na orelha. Minhas pálpebras começam a cair. Me é impossível viajar a Honolulu, pois a lepra se faz visível. Logo minha figura ficará deteriorada, suponho. Estando certo de que a doença é real, permaneço tranqüilo e resignado, e até sou mais feliz entre as pessoas aqui. O bom Deus sabe o que é melhor para minha santificação, e nesta convicção digo todos os dias um bom ‘fiat voluntuas tua’ [seja feita a tua vontade]. Tenha a bondade de rezar por este seu amigo provado e recomendar-me, assim como aos meus desventurados leprosos, a todos os servidores de Deus“.
Tendo a notícia de sua doença se espalhado por todo o arquipélago, o Pe. Damião teve de enfrentar uma prova que lhe foi um sofrimento atroz: seus superiores se opuseram categoricamente a que viajasse à capital, Honolulu, por qualquer motivo que fosse, inclusive para a confissão sacramental. Sua chegada seria suficiente para espantar os fiéis das capelas da missão, pensavam. O aflito sacerdote missionário deixou extravasar um pouco de sua tristeza em uma carta ao Pe. Léonor Fouesnel (superior provincial que tratava o Pe. Damião com incompreensão e hostilidade): “a negativa absoluta expressa em um tom de autoridade policial, mais que em tom de superior religioso, e feita em nome do bispo e do ministro como se a missão estivesse posta em quarentena, me causou – asseguro-o sinceramente – mais dor do que tudo o que tive de sofrer desde a infância. Respondi com um ato de submissão absoluta em virtude de meu voto de obediência. Continuo estando em paz (…). Sempre resignado à santa vontade do bom Deus em nossos sofrimentos cada vez mais lancinantes, sejamos, Monsenhor, mortui in Christo… vitae nostrae sint absconditae in Deo – mortos em Cristo e que nossas vidas estejam escondidas em Deus“.
A Eucaristia, seu alimento
O Pe. Damião era um entusiasta da sagrada Eucaristia. Afinal, a Adoração Eucarística fazia parte do espírito da congregação em que ingressara, e nas viagens pelas regiões entregues a seus cuidados ele lamentava não ter, por vezes, o Santíssimo Sacramento para junto a Ele apresentar suas preces, suas confidências, seus anseios. Em carta ao Pe. Alberto Montiton, seu grande amigo que se transferira de Molokai para Thaiti, se lê: “Vossa carta de 14 de março veio cicatrizar um pouco a profunda ferida no coração que vossa partida me havia causado. As lágrimas que eu então vertia eram perfeita expressão de minha dor pela perda e meu pressentimento da penosa e excepcional situação na qual ia passar o resto de meus dias. De fato, meu querido padre, desde que perdi em vós um bom companheiro neste triste leprosário, não tenho tido mais que a visita momentânea de um irmão cada dois ou três meses. Ademais, a terrível doença, cujo começo conheceis, faz progressos espantosos e ameaça impedir-me, talvez logo, de celebrar a Santa Missa e, não tendo outro sacerdote, eu me veria privado da santa comunhão e do santo sacramento. Tal privação é a que mais me custará e que tornará insuportável minha situação. Não é a doença e os sofrimentos o que me desencoraja; longe disso. Até aqui me sinto feliz e contente e, se me fosse dada a oportunidade de sair daqui em boa saúde, diria sem titubear: fico com meus leprosos” (maio de 1886).
Distinguido pelas autoridades
Apesar dos vários meses em que permanecera em uma verdadeira prisão – pois esteve preso pela sagrada obediência, cárcere sem grades ou cadeias porém mais encarcerante do que os que as têm – pôde o Pe. Damião experimentar algum consolo: foi-lhe permitida a viagem a Honolulu sem cometer desobediência ou incorrer em censuras. Pelo contrário: recebeu a visita do próprio Rei do Havaí, Kalakaua I, de seu primeiro ministro Walter M. Gibson, e do bispo Mons. Bernard Hermann Koeckemann.
Em setembro de 1881 a princesa havaiana Lydia Liliuokalani havia visitado os leprosos em Molokai, e ficou tão comovida com a miserável situação em que se encontravam imersos associada à extrema dedicação do sacerdote missionário que não conseguiu pronunciar o discurso que havia preparado, cujo texto tinha às mãos. Retornando a Honolulu solicitou que o esforçado padre fosse investido como Comandante Cavaleiro da Real Ordem de de Kalakaua, honraria que a ele foi então concedida pelo soberano reinante em reconhecimento aos seus “esforços no alívio dos sofrimentos e na mitigação das dores dos infelizes“, sendo humildemente aceita e considerada como uma atenção dada a seus leprosos. A insígnia era uma medalha com a Cruz da Real Ordem de Kalakaua. Anos depois, em meio aos sofrimentos finais de sua enfermidade, o Pe. Damião salientou: “o Senhor me condecorou com sua cruz particular: a lepra“.
Trabalhando até ser abatido pela doença
Apesar da progressão da doença, o Pe. Damião a ela não se entregou: ao contrário, continuou a ministrar os sacramentos, a visitar os enfermos, a consolar os que estavam tristes, a pregar o Evangelho. Em 19 de março de 1889 completou 25 anos de ordenação presbiteral, porém no dia 28 do mesmo mês prostrou-se em seu leito para não mais o deixar, pois seu estado de saúde se agravou. Fez uma confissão geral ao Pe. Wendelin Moellers, que o assistio, o qual em seguida confessou-se ao santo homem que ali jazia, e em seguida ambos renovaram os votos religiosos. Esse sacerdote foi encarregado pelo Pe. Damião de dizer ao superior geral que seu “mais doce consolo nesses momentos era morrer membro da Congregação dos Sagrados Corações“.
Em 15 de abril de 1889, após quase 16 anos entre os leprosos de Molokai e tendo-se tornado um deles, o Pe. Damião partiu para a eternidade. Contava apenas 49 anos, mas a aparência lhe atribuia idade muito superior. Foi sepultado no cemitério da comunidade em que vivia, mas em 1936 seus restos mortais retornaram à Bélgica, sendo postos em um jazigo na igreja dos Sagrados Corações, em Louvain. Por ocasião da beatificação (feita por João Paulo II em 1995) os ossos de sua mão direita – que tanto batizou, ungiu, consagrou, abençoou – retornaram ao Havaí.
Honrado, distinguido e venerado não só pelos católicos
A veneração e o respeito ao Pe. Damião de Molokai não se restringem à Igreja Católica: diversas confissões não católicas viram nele altíssimas qualidades, e ainda em vida ele foi distinguido com a admiração e o apoio (inclusive financeiro) advindos de agremiações não alinhadas com as convicções pelas quais o sacerdote missionário viveu e morreu. Uma detalhada carta aberta foi dirigida pelo escritor Robert Louis Stevenson a um ministro da religião por ele seguida, em firme e fundamentada defesa da memória do recém falecido Pe. Damião, vítima de críticas destrutivas que visavam a Santa Igreja através de seu dedicado servo.
O sacerdote missionário em 11 de outubro de 2009 passou a ser chamado São Damião de Molokai, canonizado pelo Papa Bento XVI em presença do rei e da rainha da Bélgica em meio à imensa alegria dos irmãos e irmãs da Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria e da Adoração Perpétua ao Santíssimo Sacramento do Altar espalhados pelo mundo.Disse Mahatma Ghandi: “Se a assistência aos leprosos é tão cara ao coração dos missionários católicos, isso se deve ao fato de que nenhuma obra exige, como ela, um espírito de sacrifício. Ela exige o mais elevado ideal, a mais perfeita abnegação. O mundo político e jornalístico não tem heróis os quais possa glorificar e que sejam comparáveis ao Pe. Damião de Molokai. A Igreja tem entre os seus milhares de pessoas que, como ele, sacrificaram sua vida em serviço dos leprosos. Valeria a pena pesquisar em qual fonte um tal heroísmo se alimenta“.