SANTO DO DIA – 04 DE OUTUBRO – SÃO FRANCISCO DE ASSIS
Padroeiro da Itália (1181-1226)
Este gigante da santidade era fisicamente de modesta estatura, tinha barbicha rala e escura. E, no plano cultural, ainda mais modesto. Conhecia o provençal, ensinado pelo pai, por ter feito algumas leituras de romances de cavalaria. Era um hábil vendedor de tecidos, ao lado de um pai que lhe enchia a bolsa de moedas. Nas alegres noitadas com os amigos, Francisco não media despesas. Participou das lutas entre as cidades e conheceu a humilhação da derrota e de um ano de prisão em Perúgia.
No regresso, fez-se armar cavaleiro pelo conde Gualtério e esteve a ponto de partir para a Apúlia. Mas, em Espoleto, “pareceu-lhe ver”, conta são Boaventura na célebre biografia, “um palácio magnífico e belo, e dentro dele muitíssimas armas marcadas com a cruz, e uma voz que vinha do céu: ‘São tuas e dos teus cavaleiros’”.
A interpretação do sonho veio-lhe no dia seguinte: “Francisco, quem te pode fazer mais bem, o senhor ou o servo?” Francisco compreendeu, voltou sobre seus passos, abandonou definitivamente a alegre companhia e, enquanto estava absorto em oração na igreja de São Damião, ouviu claramente o apelo: “Francisco, vai e repara a minha Igreja que, como vês, está toda em ruínas”. O jovem não fez delongas e, diante do bispo Guido — a cuja presença o pai o conduzira à força para fazê-lo desistir —, despojou-se de todas as roupas e as restituiu ao pai.
Improvisou-se em pedreiro e restaurou do melhor modo possível três igrejinhas rurais, entre as quais Santa Maria dos Anjos, dita Porciúncula. Uma frase iluminante do Evangelho indicou-lhe o caminho a seguir: “Ide e pregai… Curai os enfermos… Não leveis alforje, nem duas túnicas, nem sapatos, nem bastão”.
Na primavera de 1208, 11 jovens tinham-se unido a ele. Escreveu a primeira regra da Ordem dos Frades Menores, aprovada oralmente pelo papa Inocêncio III, depois que os 12 foram recebidos em audiência, em meio ao estupor e à indignação da cúria pontifícia diante daqueles jovens descalços e malvestidos.
Mas aquele pacífico contestador teve também a solene aprovação do sucessor, Honório III, com a bula Solet Annuere, de 29 de novembro de 1223.
Um ano depois, na solidão do monte Alverne, Francisco recebeu o selo da Paixão de Cristo, com os estigmas impressos em seus membros. Depois, ao aproximar-se da “irmã Morte”, improvisou seu “Cântico ao irmão Sol”, como hino conclusivo da pregação de seus frades. Por fim, pediu para ser levado à sua Porciúncula e deposto sobre a terra nua, onde se extinguiu cantando o salmo ‘Voce mea’, nas vésperas de 3 de outubro.
Retirado do livro ‘Os Santos e os Beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente’, Paulinas Editora.
SÃO FRANCISCO DE ASSIS
São Francisco foi um grande santo, e um homem cheio de alegria. “A sua simplicidade, a sua fé, o seu amor por Cristo, a sua bondade por cada homem o fizeram feliz em toda situação. Olhando para ele, compreendemos que é este o segredo da verdadeira felicidade: tornarmo-no santos!” (Bento XVI)
No início do décimo-terceiro século, havia na cidade de Assis, um homem oriundo de estirpe nobre, mas que se fizera mercador e dispunha de avultada fortuna. Tinha um filho, que se chamava João. Como o seu comércio obrigava a constantes contatos com os franceses, fez questão que o filho aprendesse francês.
João chegou a falar tão bem essa língua, que recebeu a alcunha de François (Francisco), sob a qual é conhecido. Unicamente preocupados como os negócios, os pais do jovem Francisco haviam negligenciado a sua educação. Este, a princípio, mostrava-se muito inclinado aos vãos divertimentos mundanos e a adquirir riquezas. Entretanto, obrigara-se a dar esmola a todo e qualquer pobre que a pedisse pelo amor de Deus.
Certa vez em que, muito ocupado, se recusara a atender um mendigo, arrependeu-se, e correu atrás dele para entregar-lhe o óbulo solicitado. Outra vez, recuperando-se de grave moléstia, mandou fazer roupas luxuosas e montou a cavalo, disposto a divertir-se um pouco. De súbito, porém, no meio de uma planície, apeia-se, despoja-se das vestes, troca-as pelos andrajos de um mendigo, cuja miséria lhe comovera o coração. Essa fidelidade às primeiras graças é recompensada por Deus com graças ainda maiores. Certo dia, ao dar com um leproso que se aproximava, o primeiro impulso de Francisco foi recuar, horrorizado, Recuperando-se, porém, beija o leproso e dá-lhe esmola, Era assim que aquele filho de mercador fazia seu aprendizado na virtude.
Finalmente decidido a chegar à perfeição, Francisco só achava prazer na solidão e pedia a Deus, incessantemente, que lhe desse a conhecer a vontade. Muitas vezes visitava os hospitais, onde carinhosamente se punha a serviço dos enfermos; chegava a beijar-lhes as úlceras, sem dar atenção às fraquezas e repulsas da natureza. Quando não dispunha de dinheiro para distribuir entre os pobres, dava-lhes suas próprias roupas. Irritado com as suas prodigalidades, o pai fê-lo comparecer perante o bispo de Assis para que renunciasse aos seus bens. Francisco devolveu-lhe até mesmo as roupas que usava, e cobriu-se com um surrado capote de camponês, que alguns dias mais tarde, substituiu por um manto de eremita.
Dois anos depois, durante uma missa a que assistia, ficou extremamente impressionado com as palavras do Evangelho: “Não queirais possuir ouro nem prata, nem tragais dinheiro em vossas cinturas, nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão”. Obedeceu-lhe literalmente e aplicou-as a si mesmo; e, depois de jogar fora seu dinheiro, de tirar os sapatos e abandonar o cajado e o cinto de couro, vestiu um pobre hábito, que amarrou com uma corda. Era o traje habitual dos pastores e dos pobres camponeses daquele cantão da Itália.
Foram esses os primórdios de São Francisco; como seriam os dias que viriam depois? Possa eu terminar por onde ele começou! Meu Deus, quando medito na vida de vossos santos, cada vez mais me convenço de que nada valho e de que nada faço. E assim mesmo chego a imaginar muitas vezes que sou qualquer coisa, que faço qualquer coisa! Meu Deus, tende piedade da minha miséria e do meu orgulho. Concedei-me a graça de fazer com que me despreza e me aborreça, mas sem impaciência, e sem desconfiar da vossa misericórdia.
São Francisco tornou-se o patriarca de uma ordem religiosa que se espalhou pela terra inteira. Deu ao seus monges o nome de “Irmãos Menores”, ou “Irmãozinhos”, para distingui-los dos religiosos de São Domingos, denominados “Irmãos Pregadores”.
No decorrer do tempo, receberam também as alcunhas de “franciscanos”, e de “Cordeleiros”, porque cingiam a cintura com uma corda. Dividiram-se em várias famílias, das quais a dos Capuchinhos é a que mais estritamente observa a pobreza. Francisco dizia que o espírito da pobreza era o fundamento da sua ordem. Seus religiosos nada possuíam que lhes pertencesse exclusivamente. Também não permitia que recebessem dinheiro, apenas as coisas necessárias à subsistência diária. Chamava a pobreza sua dama, sua rainha, sua mãe, sua esposa, reclamava-a insistentemente de Deus, como seu quinhão, seu privilégio: “Ó Jesus, vós que vos comprouvestes em viver na extrema pobreza, fazei-me a graça de conceder-me o privilégio da pobreza. Meu desejo mais ardente é ser enriquecido com esse tesouro, Peço-o para mim e para os meus, a fim de que para a glória do vosso santo nome nada possuamos, nunca, sob o céu, para que devamos nossa própria subsistência à caridade dos outros e por isso mesmo sejamos muito moderados e muito sóbrios”.
O amor de Francisco pela obediência não era menos digno de admiração. Com freqüência era visto consultando os últimos de seus irmãos, embora fosse dotado de rara prudência e até mesmo do dom da profecia. Nas suas viagens costumava prometer obediência ao religioso que o acompanhava. Considerava a propensão que tinha para a obediência uma das maiores graças que Deus lhe concedera, pois com a mesma facilidade e presteza obedecia tanto um simples noviço como ao mais antigo e prudente dos frades; dizia, justificando-se, que devemos considerar não a pessoa a quem obedecemos, mas à vontade de Deus manifestada através da vontade dos superiores.
Vemos como São Francisco amava a pobreza e a obediência. E, nós, será que amamos? E, nós, será que as praticamos?
Quanto à milagrosa impressão dos estigmas de São Francisco, é comemorada no dia 17 de setembro.
Tinha particular afeição pelas cotovias. Comprazia-se em admirar na plumagem desses pássaros o matiz pardo e acinzentado que escolhera para a sua ordem, a fim de dar aos frades freqüentes ocasiões para meditarem na morte, na cinza do túmulo. Ao mostrar aos seus discípulos a cotovia que se erguia nos ares e se punha a cantar, depois de ter apanhado alguns grãozinhos no chão, dizia alegremente: “Vede, elas nos ensinam a dar graças ao Pai comum que nos proporciona alimento, a comer apenas para a sua glória, a desprezar a terra e a elevar-nos ao céu, onde devemos nos entreter.”
Certa vez, quando pregava no povoado de Alviano e não conseguia ser ouvido por causa da algazarra das andorinhas que tinham construído o ninho naquele lugar, a eles se dirigiu nestes termos: “Irmãs andorinhas, já falastes bastante, chegou agora a minha vez de falar. Escutai a palavra de Deus e ficai em silêncio enquanto eu pregar”. As avezinhas não soltaram mais um único pio, e não se mexeram do lugar em que se encontravam. São Boaventura, que narra o fato, acrescenta que, sentindo-se um estudante de Paris incomodado com o chilrear de uma andorinha, disse a seus condiscípulos: “Devem ser uma das que perturbavam o bem-aventurado Francisco no seu sermão e à qual mandou calar-te”. Depois disse à andorinha: “Em nome de Francisco, servo de Deus, ordeno-te que te cales e que te chegues a mim”. Imediatamente o pássaro se calou e pousou-lhe na mão. Surpreso, ele a deixou ir, e não foi mais importunado. Era assim que Deus se comprazia em honrar o nome do seu servo.
Um dia, quando São Francisco se preparava para tomar a refeição em companhia do irmão Leão, sentiu-se intimamente confortado ao ouvir o canto de um rouxinol. Pediu a Leão que também cantasse os louvores de Deus, alternando sua voz com a do pássaro. Como o religioso se desculpasse, alegando falta de voz, o santo pôs-se a responder ao rouxinol, e assim continuou até à noite, quando foi obrigado a interromper-se, confessando com santa inveja que o passarinha o derrotara. Fê-lo pousar na sua mão, louvou-o por ter cantado tão bem, deu-lhe de comer, e só depois de ter recebido a sua benção, e com a sua permissão, foi que o rouxinol voou.
Quando, pela primeira vez, visitou o monte Alvergue, viu-se rodeado por uma multidão de pássaros que lhe pousaram na cabeça, nos ombros, no peito e nas mãos, batendo as asas e demonstrando com o movimento de suas cabecinhas o prazer que lhes causava a chegada de seu amigo. “Vejo, disse Francisco a seu companheiro, vejo que devo permanecer aqui, pois meus irmãozinhos estão contentes.” Durante uma estada sua nessas montanhas, um falcão, aninhando nas proximidades, afeiçoou-se ao santo homem; anunciava-lhe com um grito que chegara a hora em que costumava rezar; e, se Francisco se encontrava doente, dava-lhe o aviso uma hora mais tarde a fim de poupá-lo; e quando, ao romper do dia, sua voz, como um sino inteligente, tocava as matinas, tinha o cuidado de atenuá-la e suavizar-lhe a sonoridade. Era, afirma São Boaventura, o divino presságio dos grandes favores que o santo receberia nesse mesmo lugar.
Se isso nos surpreende é por nunca termos suficientemente meditado no mistério a que se refere São Paulo, ao dirigir-se aos cristãos de Roma: “A natureza inteira, criada para glorificar a deus, está sujeita, embora a contragosto, à vaidade do homem; sofre, e espera que os filhos de Deus a libertem. Pois a própria criação só será libertada dessa servidão corrupta por uma certa participação na glória dos filhos de Deus, na glória dos santos.” É o que ensina o Apóstolo. Não deve surpreender aos cristãos, pois, o fato de sofrerem as criaturas com a sujeição em que as mantém os pecadores, de se alegrarem à vista dos santos que lhes iniciam a libertação, lhes testemunharem à sua maneira um respeito religioso e lhes obedecerem à voz, como muitas vezes vimos fazer os leões e os ursos dos anfiteatros, que se deitavam familiarmente aos pés dos mártires, e os animais do deserto, que obedeciam à voz de Santo Antão.
Entre os animais, São Francisco amava particularmente os que podiam simbolizar a mansuetude de Jesus Cristo, ou figurar qualquer virtude. O cordeiros evocavam-lhe o dulcíssimo Cordeiro de Deus, que se deixava conduzir à morte para remir os pecados do mundo. Quando passava ao longo das pastagens, saudava amigavelmente os rebanhos, e as ovelhas aproximavam-se dele e festejavam-no à sua maneira. Mais de uma vez resgatou cordeiros a caminho do matadouro.
Ao mesmo tempo dominava a ferocidade dos lobos e fazia pactos com eles. Certo dia, quando viajava de Grécio a Cotannelo com um camponês, os lobos achegaram-se e acariciaram-no como fazem os cães. Testemunhando o prodígio, os habitantes dos arredores suplicaram a São Francisco que os livrasse dos dois grandes flagelos que os atormentavam, os lobos e o granizo. Disse-lhes São Francisco: “Pela honra e pela glória de Deus Todo-Poderoso, dou-vos minha palavra que, se crerdes em mim e tiverdes piedade de vossas almas fazendo uma boa confissão e dignos frutos de penitência, o Senhor vos considerará favoravelmente, vos livrará dessas calamidades e tornará vossa terra abundante em toda a espécie de bens. Mas também vos declaro que, se fordes ingratos, se fizerdes como o cão que retorna ao vômito, Deus ainda mais irritado ficará contra vós, e dobrará vossas dores e tribulações”. Enquanto os habitantes do vale de Grécio permanecerem fiéis a Deus, os lobos não comerão seus rebanhos, e a nuvem, pesada de saraiva e de tempestade, desviar-se-á de suas terras para desfazer-se noutro lugar.
No tempo em que São Francisco morava na cidade de Eugúbio, um lobo assolava aquela região, e cidadãos armados andavam à sua procura como se fosse um inimigo público. Não obstante as súplicas dos irmãos, São Francisco dirigiu-se, sozinho, ao encontro do lobo. Assim que avistou, ordenou-lhe, em nome de Deus, que não fizesse mais devastações, e o feroz animal, que se tornou manso como um cordeiro, foi deitar-se aos pés do santo. Este assim lhe falou: “Meu irmão lobo, tu atacas e matas as criaturas de Deus, és um assassino, e toda a região tem horror a ti. Mas quero, irmão lobo, que falcas a paz com ela. Como éa fome que te conduz ao mal, quero que me prometas não mais praticá-lo, se te alimentarem”. Em sinal de consentimento, o lobo inclinou profundamente a cabeça. “Dá-me um penhor da tua palavra”, continuou o santo homem, estendendo-lhe a mão. O lobo ergueu com naturalidade a pata dianteira e pousou-a na mão de seu amigo e senhor, e depois o acompanhou à cidade. São Francisco disse ao povo que se reunira para admirar tão grande maravilha: “Entre outras coisas, Deus permitiu esse flagelo por causa dos pecadores; mas as chamas eternas do inferno são bem mais temíveis aos condenados do que a ferocidade de um lobo, que só pode matar o corpo. Meus irmãozinhos, convertei-vos a Deus, e fazei penitência, e Deus vos livrará do lobo, no tempo, e do inferno, na eternidade. Meu irmão lobo, aqui presente, prometeu-me fazer um pacto convosco, se do vosso lado prometerdes dar-lhe todos os dias o alimento necessário.” O povo, por aclamação, comprometeu-se a fazê-lo. O lobo novamente deu mostras do seu consentimento e, durante dois anos consecutivos, veio à cidade, de casa em casa, reclamar alimento, como fazem os animais domésticos; e os habitantes ficaram muito pesarosos quando morreu, pois representava para eles um memorial da virtude e da santidade de Francisco.
Por amizade para com as abelhas, Francisco mandava levar-lhes, durante o inverno, mel ou bom vinho para alimentá-las e aquecê-las. Amava a água por ser símbolo da penitência e por ter lavado nossa alma no batismo. Também reverenciava as pedras, lembrando-se da pedra angular do Evangelho. Recomendava aos irmãos que iam cortar lenha na montanha para deixarem rebentos vigorosos em memória de Jesus Cristo que quisera morrer pela nossa salvação no lenho da Cruz. Fazia questão de que o jardineiro conservasse, no centro do jardim principal, um jardinzinho composto de flores suaves, fragrantes e belas ao olhar, a fim de que com sua beleza convidassem a todos para louvar a Deus. As flores elevavam sua alma a essa flor brotada da haste de Jessé, e cujo perfume alegre o mundo.
Essa fraternidade na piedade e na afeição, Francisco estendia-se até mesmo aos elementos. Um dia em que os médicos iam aplicar-lhe um ferro em brasa nas têmporas, primeiro o abençoou e depois lhe disse: “Meu irmão fogo, o Senhor te fez antes de todas as coisas, e te fez belo, útil e poderoso; se, pois, cauteloso hoje, e digne-se Deus suavizar-se de tal maneira que eu possa suportar-te”. O ferro foi-lhe aplicado e o santo exclamou: “Meus irmãos, louvai comigo o Altíssimo; o próprio fogo não queima, e não sinto a menor dor”.
Quando o amor transbordava no coração de Francisco, ele se punha a andar pelo campo; convidava as colheitas, as vinhas, as árvores, as flores do campo, as estrelas do céu, todos seus irmãos da natureza, a juntarem-se a ele na exaltação ao Criador, e sua ingênua e radiosa ternura, erguendo-se de grau em grau até o sol, um hino ascendia de sua alma. (…)
Havia já dois anos que São Francisco recebera os estigmas, e sua saúde declinava dia a dia; e tendo aumentado os pregos de seus pés, não podia mais caminhar. Pedia que o levassem às cidades e às aldeias para animar os outros a carregarem a cruz de Jesus Cristo.
Numa dessas excursões, curou uma criancinha de Bagnara que, mais tarde foi São Boaventura. Francisco tinha um grande desejo de voltar às primeiras práticas de humildade, servir os leprosos, e obrigar o corpo a servir-lhe, como no início da conversão. O fervor do espírito compensava a fraqueza do corpo; mas as enfermidades de tal modo se agravaram que eram raros os lugares nos quais não sentia dores muito fortes; e, tendo as suas carnes se consumido inteiramente, só lhe restavam pele e ossos. Os frades acreditavam defrontar outro Job, tanto por causa dos sofrimentos como da paciência com que os suportava. O santo pediu-lhes que o levassem à Nossa Senhora dos Anjos, a fim de entregar a alma a Deus no mesmo lugar onde recebera o espírito da graça.
Nos seus últimos momentos, ditou uma carta dirigida a todos os superiores, sacerdotes e irmãos da ordem, recomendando-lhes respeito para com o santíssimo sacramento do altar. Chegou a ditar seu testamento, no qual recomendou particularmente o respeito para com os sacerdotes, a observação da regra e o trabalho manual.
Sentindo aproximar-se a última hora, mandou que deitassem na terra nua, tirou a túnica, a fim de tornar mais sensível o seu perfeito despojamento; depois, erguendo os olhos ao céu, cobriu com a mão esquerda a chaga do lado direito e disse a seus irmãos: “Fiz o que me cabia: Nosso Senhor vos ensinará o que deveis fazer”. Eles se desfaziam em lágrimas; e um dos religiosos, a quem denominava seu guarda, adivinhando a intenção do santo, levantou-se prontamente, apanhou uma túnica e uma corda que lhe apresentou, dizendo: “Empresto-vos este hábito como a um mendigo, aceitai-o por obediência.” O santo homem ergueu as mãos para o céu e bendisse a deus por ter sido aliviado de todos os cuidados. Em seguida mandou chamar todos os irmãos que se encontravam na casa e exortou-os a perseverarem no amor de Deus, na paciência, na pobreza, na fé da Igreja Romana; depois, estendendo sobre eles os braços colocados um sobre o outro em forma de Cruz, deu sua benção tanto aos ausentes como aos presentes. Satisfazendo-lhe a um desejo, Frei Leão e Frei Ângelo cantaram em coro o cântico do irmão sol e da irmã morte. Terminado o cântico, pediu que lhe lessem a Paixão de Nosso Senhor, segundo São João. Depois dessa leitura, começou a recitar com voz agonizante o salmo de Davi:
Com minha voz, clamei ao Senhor; com minha voz supliquei ao Senhor.
Depois de pronunciar as últimas palavras, sua boca fechou-se para sempre: Francisco não mais pertencia a este mundo. Era a noite do sábado para domingo, no dia 4 de Outubro de 1226, quadragésimo-quinto da sua vida, vigésimo da sua conversão, décimo-oitavo da instituição da sua ordem. (…)
Fotos: santiebeati.it
(Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XVII, p. 303 à 319)
Conheça mais sobre São Francisco de Assis
São Francisco de Assis nasceu em 1182, tendo partido para a Eternidade em 1226, aos 44 anos de idade. Na região e na época em que viveu era grande o apego ao luxo e às riquezas, o que minava a sociedade e causava danos à Igreja. Propôs ele um novo ideal de pobreza, obediência e castidade, tendo fundado a Ordem dos Frades Menores (franciscanos), que se expandiu pelo mundo através de várias ramificações. Também, com Santa Clara, fundou a ordem das Clarissas.
Havia se iniciado o século XIII. O jovem filho de um bem sucedido comerciante da cidade de Assis, até então apegado às amizades, aos bens materiais e às atrações do mundo, como a quase totalidade dos rapazes de sua idade, começa a inclinar-se à carreira das armas. Em uma batalha foi preso, tendo de aguardar cerca de um ano até ser resgatado, quando então foi prostrado por uma doença. Recuperado, tentou novamente engajar-se em um exército, porém o chamado de Deus foi mais forte: o jovem João, apelidado Francisco (nome pelo qual se tornou conhecido), voltou-se para o Criador, pois passou a vê-lo com os olhos do espírito ao considerar as virtudes através das quais Ele se revelava.
A juventude e a conversão
Francisco trabalhava como comerciante, e mesmo gostando de obter lucros jamais se prendeu desesperadamente ao dinheiro e às riquezas, gostando, por vezes, de ajudar os pobres. Era muito rico, mas não avarento, e sim pródigo e gastador; um negociante esperto, mas ao mesmo tempo esbanjador insensato. Era gentil, paciente, afável e manso, mas nem sempre as qualidades se sobressaíam naquele jovem que tinha por objetivo a vida mundana.
Certa vez um pobre adentrou a loja em que estava Francisco ocupado com os negócios, para pedir uma esmola pelo amor de Deus, sendo despedido com rispidez sem nada ganhar. A consciência de Francisco logo o acusou, dizendo: “se ele tivesse pedido algo em nome de algum conde ou barão, com certeza o terias atendido; quanto mais não o deverias ter feito pelo Rei dos reis e Senhor de todos”. Tomou ali Francisco a decisão de nunca mais negar o que lhe fosse pedido em nome de tão grande Senhor.
Francisco passou a dar generosas esmolas aos pobres que encontrava, inclusive distribuindo suas roupas e outros bens, procurando assim seguir o mandamento do amor ao próximo tantas vezes ilustrado pelos fatos e parábolas narrados nas Sagradas Escrituras. Passou a ser alvo de críticas e deboches por parte dos habitantes da região, e de grande raiva por parte de seu pai, dotado de profundo apego a todos os bens e riquezas que acumulara no comércio de tecidos em que enriquecera.
A rejeição ao mundo e a entrega à pobreza
O conflito familiar chegou a tal ponto que o pai de Francisco, Pedro de Bernardone, levou o caso ao bispo, acusando o filho de dissipar sua fortuna e exigindo uma compensação por tudo o que fora por ele retirado de sua loja para dar aos pobres. Então o jovem, inspirado pelo Espírito Santo, tomou a decisão inimaginável por todos os que ali presenciavam a cena: entregou ao avarento progenitor tudo o que tinha consigo, inclusive as próprias roupas, e disse: doravante não mais direi “meu pai Pedro de Bernardone”, e sim “Pai nosso que estais no Céu”. Coberto apenas pelo cilício (um áspero couro animal destinado a incomodar a pele, que usava sob as roupas para combater certos impulsos corporais), Francisco foi então abrigado pela capa cedida pelo bispo, ali renunciando publicamente à herança; pediu a bênção episcopal e partiu para a vida de pobreza, passando depois a ter por companheiros vários amigos que quiseram seguir a mesma via de perfeição. Não chegara sequer aos 25 anos quando esses fatos ocorreram. Era o início da família franciscana, que não se restringiu ao sexo masculino, pois Francisco, com a jovem Clara – que se inclinou a seguir os passos desse santo homem -, fundou o ramo feminino, que obteve do papa Inocêncio III o reconhecimento do direito de ser pobre e de nada possuir.
Diz-se que Francisco e a Pobreza contraíram um casamento místico. Na verdade, conforme estudos aprofundados feitos nos antiquíssimos escritos históricos e alegóricos a respeito do Fundador e dos primeiros franciscanos, nota-se que o que Francisco fez foi uma vassalagem mística com a Pobreza, a quem se entregou para servi-la. A ela se referia como “minha senhora”, expressão que na época caracterizava uma obediência e com a qual se entregava àquela virtude que tanto admirava.
Entre as mais famosas e importantes virtudes, que no homem preparam um lugar para Deus e ensinam o caminho melhor e mais rápido para chegar até Ele, a santa Pobreza sobressai a todos por uma certa prerrogativa e supera os títulos das outras por uma beleza singular. Ela é fundamento e guardiã das virtudes todas, e entre as conhecidas virtudes evangélicas ela tem, merecidamente, um lugar de honra. Essas palavras iniciam o texto alegórico que mostra a relação mística entre o Fundador franciscano e a Senhora Pobreza, esposa de Cristo.
A Oração da Paz, espelho do amor ao próximo
Em tudo Francisco procurava seguir o Evangelho, como bem se pode perceber nas belas palavras da Oração da Paz que externam o amor ao próximo, e que nunca perderam a atualidade:
Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei com que eu procure mais consolar que ser consolado.
Compreender que ser compreendido; amar que ser amado.
Pois é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
Algumas admoestações de Francisco evidenciam a paz e o amor que se deve ter para com o próximo. Disse ele, comentando as palavras do Divino Mestre “bem aventurados os pacíficos, porque eles serão chamados filhos de Deus”: São verdadeiramente pacíficos os que, no meio de tudo quanto padecem neste mundo, se conservam em paz, interior e exteriormente, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Disse também que é bem aventurado o homem que suporta o seu próximo com suas fraquezas tanto quanto quisera ser suportado por ele se estivesse na mesma situação. E ainda, referindo-se à benquerença que deve reinar nas Casas da família franciscana: Bem aventurado o servo que ama o seu confrade enfermo que não lhe pode ser útil, tanto como ao que tem saúde e está em condições de lhe prestar serviços. Bem aventurado o servo que tanto ama e respeita o seu confrade quando está longe como se estivesse perto, e não diz na ausência dele coisa alguma que não possa dizer na sua presença sem lhe faltar à caridade.
Irmão Sol, irmão vento, irmã água, irmão fogo
Vendo a presença de Deus em tudo, Francisco compôs o belíssimo Cântico das Criaturas em que manifesta irmandade até mesmo com os seres inanimados ao neles perceber que, como o homem, foram criados pelo Altíssimo, a quem é devido todo o louvor:
Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra, e toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos,
e nenhum homem é digno de te mencionar.
Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol,
que clareia o dia e com sua luz nos ilumina.
E ele é belo e radiante, com grande esplendor;
de ti, Altíssimo, ele é a imagem.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas;
no céu as formastes claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Vento
e pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo o tempo,
por quem dás às tuas criaturas o sustento.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Fogo,
pelo qual iluminas a noite.
Ele é belo e jucundo, e vigoroso e forte.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe Terra,
que nos sustenta e governa, e produz frutos diversos,
com flores coloridas, e ervas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor
e suportam enfermidades e tribulações.
Bem aventurados aqueles que as suportam em paz,
pois por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã, a Morte corporal,
da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar conformes a tua santíssima vontade,
porque a morte segunda não lhes fará mal.
Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças
e servi-o com grande humildade.
Saudação à Mãe de Deus
A Santíssima Virgem, honrada na capelinha de Santa Maria dos Anjos (a Porciúncula, de onde Francisco, ao findar seus dias neste mundo, partiria rumo à Casa do Pai) era especialmente venerada pelo Pobrezinho de Assis, que lhe compôs uma singela saudação:
Salve, ó Senhora santa, Rainha santíssima, Mãe de Deus, ó Maria, que sois Virgem feita igreja, eleita pelo santíssimo Pai celestial, que vos consagrou por seu santíssimo e dileto Filho e o Espírito Santo Paráclito! Em vós residiu e reside toda a plenitude da graça e todo o bem! Salve, ó palácio do Senhor! Salve, ó tabernáculo do Senhor! Salve, ó morada do Senhor! Salve, ó manto do Senhor! Salve, ó serva do Senhor! Salve, ó Mãe do Senhor, e salve vós todas, ó santas virtudes derramadas pela graça e iluminação do Espírito Santo, nos corações dos fiéis, transformando-os de infiéis em servos fiéis de Deus!
Discernindo em tudo o Criador
Dois anos antes de passar à Eternidade, o Pobrezinho de Assis compôs um belíssimo hino de louvor a Deus, cuidadosamente registrado e passado à posteridade por um de seus seguidores. Nele se percebe como procurava Francisco, em tudo, discernir o Criador:
Vós sois o santo Senhor e Deus único, que operais maravilhas. Vós sois o Forte. Vós sois o Grande. Vós sois o Altíssimo. Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do Céu e da Terra. Vós sois o Trino e Uno, Senhor e Deus, Bem universal. Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus, vivo e verdadeiro. Vós sois a delícia do amor. Vós sois a Sabedoria. Vós sois a Humildade. Vós sois a Paciência. Vós sois a Segurança. Vós sois o Descanso. Vós sois a Alegria e o Júbilo. Vós sois a Justiça e a Temperança. Vós sois a Plenitude da Riqueza. Vós sois a Beleza. Vós sois a Mansidão. Vós sois o Protetor. Vós sois o Guarda e o Defensor. Vós sois a Fortaleza. Vós sois o Alívio. Vós sois nossa Esperança. Vós sois nossa Fé. Vós sois nossa inefável Doçura. Vós sois nossa eterna Vida, ó grande e maravilhoso Deus, Senhor Onipotente, misericordioso Redentor.
Vê-se, nessas inspiradas palavras, o profundo entendimento das riquíssimas qualidades de Deus manifestado por aquele que se entregou à pobreza, e que abraçou os conselhos evangélicos e as demais virtudes que tão bem percebia no Criador, a quem se deu por inteiro. Dotado de personalidade marcante, Francisco deixou-se impregnar pelas qualidades divinas de tal forma que não só a época em que viveu ficou marcada por sua passagem por este mundo, mas também os séculos que se seguiram. Deixou-nos ele um dos maiores exemplos da verdadeira contemplação das perfeições de Deus – que chegavam a levá-lo a um verdadeiro êxtase – e do amor que se deve ter para com Ele, sem o que nenhuma religiosidade atinge sua plenitude.
Assemelhando-se cada vez mais ao Altíssimo
Francisco tanto amou o Altíssimo que não só no espírito, mas também no corpo, assemelhou-se a Deus. Cerca de dois anos antes de sua morte, foi agraciado com as marcas da Paixão de Cristo, passando a ter nas mãos e pés as feridas correspondentes à crucifixão; na mesma ocasião também foi dotado de uma chaga correspondente à que foi feita pelo soldado que, com a lança, transpassara o coração de Jesus. Indo de encontro à cruz, teve a glória de receber os estigmas do Crucificado.
Os estigmas da Paixão foram concedidos a Francisco em seguida a um momento de profunda oração contemplativa no Monte Alverne, em que o Crucificado lhe apareceu sob a forma inicial de um Serafim com seis asas. Registrou-se que suas mãos e pés pareciam atravessados bem no meio pelos cravos, aparecendo as cabeças no interior das mãos e em cima dos pés, com as ponta saindo do outro lado. Os sinais eram redondos no interior das mãos e longos no lado de fora, deixando ver um pedaço de carne como se fossem pontas de cravos entortados e rebatidas, saindo para fora da carne. Também nos pés estavam marcados os sinais dos cravos, sobressaindo da carne. O lado direito parecia atravessado por uma lança, com uma cicatriz fechada que muitas vezes soltava sangue, de maneira que sua túnica e suas calças estavam muitas vezes banhadas no sagrado sangue. Infelizmente foram muito poucos os que mereceram ver a ferida sagrada do seu peito, enquanto viveu crucificado o servo do Senhor crucificado. […] Pois tinha muito cuidado em esconder essas coisas dos estranhos, e ocultava-as mesmo dos mais chegados, de maneira que até os irmãos que eram seus companheiros e seguidores mais devotados não souberam delas por muito tempo.
Buscando a perfeição, Frei Francisco tinha por costume não revelar, senão a poucos, ou a ninguém, o seu principal segredo, temendo que a revelação lhe trouxesse alguma predileção por parte dos outros que resultasse em detrimento da graça que tinha recebido. Por isso guardava sempre em seu coração e repetia aquela frase do profeta: “Escondi tuas palavras em meu coração para não pecar contra ti”.
Frei Francisco partiu para a eternidade no início da noite de 3 de outubro de 1226, sendo canonizado menos de dois anos depois. Biografado por vários de seus filhos espirituais, teve a vida divulgada em verso e em prosa até mesmo por tradição oral, em que a verdade e a lenda se entrelaçaram tão magnífica e pitorescamente que, ainda que alguns detalhes não correspondam minuciosamente à história da família franciscana, retratam muito bem o espírito do franciscanismo e de seu Fundador, o seráfico São Francisco de Assis, cuja comemoração litúrgica ocorre em 4 de outubro.
Biografia sugerida:
SÃO FRANCISCO DE ASSIS (Escritos e biografias de São Francisco de Assis, Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano). Petrópolis, Editora Vozes, 2000, 9ª edição.