O papa Leão XIV assinou em 4 de outubro, dia em que a Igreja celebra a memória de São Francisco de Assis, a primeira exortação apostólica do seu papado, Dilexi te (Eu te amei), sobre o amor aos pobres.
No primeiro grande documento de seu pontificado, o papa Leão XIV diz que os pobres não são só objetos de caridade, mas evangelistas que podem levar os fiéis à conversão por meio de seu exemplo de fraqueza e confiança em Deus.
“Os pobres podem ser para nós como mestres silenciosos, reconduzindo o nosso orgulho e a nossa arrogância a uma conveniente humildade”, escreve Leão XIV em Dilexi te (Eu te amei), publicado ontem (9).
“O idoso, por exemplo, com a fragilidade do seu corpo, lembra-nos a nossa vulnerabilidade, ainda que a tentemos esconder por trás do bem-estar ou das aparências”, escreve o papa. “Além disso, os pobres fazem-nos refletir sobre a inconsistência daquele orgulho agressivo com que muitas vezes enfrentamos as dificuldades da vida. Em suma, eles revelam a nossa precariedade e o vazio de uma vida aparentemente protegida e segura”.
O papa cita seu antecessor, o papa Francisco, ao longo do documento, que foi redigido pela primeira vez no pontificado anterior e se baseia fortemente na primeira exortação apostólica do papa argentino, Evangelii gaudium, sobre a alegria do Evangelho. Uma exortação apostólica é um dos gêneros mais importantes do magistério papal, tipicamente focado na aplicação pastoral da doutrina.
Toda a vida de Cristo é um exemplo de pobreza, escreve o papa Leão XIV, e a Igreja, se quiser pertencer a Cristo, deve dar aos pobres um lugar privilegiado.
“Para os cristãos, os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo”, escreve Leão XIV. “O Senhor se faz carne que tem fome e sede, que está doente e na prisão”.
Documento herdado do papa Francisco
O papa Leão XIV assinou a exortação em 4 de outubro, festa de são Francisco de Assis, tradicionalmente conhecido como Il Poverello (O Pobrezinho).
O papa diz no início do documento que o recebeu como herança do papa Francisco, que estava trabalhando nele nos últimos meses de sua vida.
O documento traça a doutrina da Igreja sobre os pobres, baseando-se no Antigo e Novo Testamento, na prática da comunidade cristã primitiva, nos escritos dos Padres e Doutores da Igreja, nas vidas dos santos, nos documentos do concílio Vaticano II e no magistério dos papas desde são João XXIII.
Leão XIV também elogia o exemplo de ordens religiosas contemplativas e ativas ao longo da história que ajudaram os pobres com saúde, alimentação, abrigo e educação.
“Toda a renovação eclesial sempre teve entre as suas prioridades esta atenção preferencial pelos pobres, que se diferencia, tanto nas motivações como no estilo, da atividade de qualquer outra organização humanitária”, escreve o papa.
Leia a breve análise do Padre José Eduardo:
Dilexi te: libertar a “opção pelos pobres” dos sequestradores… e dos indiferentes
Por Padre José Eduardo
Graças a Deus — e graças à obstinada continuidade do Magistério — a Exortação Dilexi te de Leão XIV pôs a casa em ordem. Devolveu a “opção preferencial pelos pobres” ao seu berço cristológico, da Escritura à Tradição, rompendo o sequestro ideológico que a transformou, por décadas, em senha partidária. O texto não pede bênção a slogans; bebe na fonte do Verbo feito pobre e relança a longa linha da doutrina social, “dos últimos cento e cinquenta anos”.
E para quem ainda quer pendurar Dilexi te no cabide da Teologia da Libertação, a resposta veio na própria Coletiva de imprensa, na apresentação do documento. Uma jornalista perguntou: “Gostaria de saber qual é a posição da Igreja em relação à Teologia da Libertação, porque há um parágrafo (na exortação) que fala da opção preferencial pelos pobres, cita Medellín, Puebla (…) e deixa um pouco de lado o documento de 84 e os anos em que se criticou de maneira forte os teólogos da libertação”. E o prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, o Cardeal Michael Czerny, SJ, responde:
“Não creio que tenham lido este texto de modo adequado. Nada é deixado de lado. Pelo contrário, o Santo Padre faz referência a um documento que, à época, foi muito bem acolhido sobre a teologia da libertação, e recupera o ponto essencial, que é o que nós fazemos. Se quisermos saber o que foi da teologia da libertação, deveríamos entender como a palavra ‘libertação’ é usada nos documentos atuais da Igreja. Um bom exemplo é a palavra ‘solidariedade’. Antes, ‘solidariedade’ era considerada uma palavra ruim. Hoje em dia, há poucas palavras mais cristãs do que esta. Eu não vejo, como você diz, um ‘deixar de lado’ os documentos de 84; não se trata de arquivar ou rejeitar algo. Eram os anos 80. A cultura muda e nosso vocabulário também precisa mudar. Não vejo neste texto a Teologia da Libertação e não creio que seja um tema importante — com todo respeito às pessoas que sofreram naquela época”.
O Papa afirma, com todas as letras, que se pode falar teologicamente de uma “opção preferencial de Deus pelos pobres”, expressão nascida na América Latina (Puebla) e integrada no Magistério sucessivo — e faz a correção de rumo decisiva: essa preferência não é exclusivismo; é a forma concreta como Deus se compadece da pobreza total do homem. Cristo no centro, portanto; e, a partir dele, os pobres.
Aqui está o reenquadramento que o queridíssimo Fr. Clodovis Boff, OSM, pediu há anos: a Teologia da Libertação partiu bem, mas escorregou na “ambiguidade epistemológica” — trocou o primum (Deus em Cristo) pelo “pobre” como princípio operativo, e assim instrumentalizou a fé “para” a libertação. Dilexi te corrige isso sem perder os ganhos: recoloca o pobre no horizonte de Cristo, e não Cristo no horizonte do pobre.
O texto fala duro das estruturas de pecado do sistema econômico-financeiro e pede mudança de mentalidade, políticas eficazes e uso responsável da ciência e da técnica. Só que tudo isso é dito dentro do primado da conversão e da graça: estruturas adoecem porque o homem adoeceu. Reforma social sem metanoia vira carpintaria ideológica; caridade sem encarnação vira ideologia.
Primeiro alvo: a ideologização que dissolveu a compaixão cristã num discurso de classe. Segundo alvo — e que muita gente prefere não ouvir: o elitismo católico, limpinho e perfumado, que terceiriza os pobres em nome de uma “pureza” estética ou de uma “neutralidade” apolítica que, no fundo, é indiferença. Dilexi te reclama compromisso concreto — “fazer-se ouvir… expor-se”, mesmo à custa de parecer “estúpido” — porque a fé não se separa do amor aos pobres sem trair o próprio Evangelho.
Leão XIV não inventa uma moda social; ele prolonga uma sinfonia: de Leão XIII a João Paulo II, Bento XVI e Francisco, a Igreja tem dito que a opção pelos pobres é intrínseca à fé cristológica, não um adereço. A novidade é o tom e o alcance: retomando um texto iniciado por Francisco, o Papa sela a continuidade e reafirma que não há cisma entre doutrina e misericórdia — o cisma é entre cristianismo e cinismo.
Em português claro: Dilexi te desideologiza o tema e desburguetiza a nossa consciência. Tira a “opção pelos pobres” das mãos dos comissários e das vitrines dos salões; devolve-a ao Coração traspassado, onde nasceu. E nos obriga a escolher: ou Cristo — com os pobres — ou a autoindulgência travestida de ortodoxia. Entre os dois, não há meio-termo que salve.
Com informações de ACI Digital e Padre José Eduardo