Ateísmo e suas causas – por Antonio Royo Marín
1. Noção e divisão
O ateísmo consiste na negação radical da existência de Deus. Ateu (do grego ἄθεος = sem Deus) é o sujeito que ignora ou se nega a aceitar a existência do Ser Supremo e que, por isso, não pratica religião alguma.
Existem duas classes de ateus: teóricos e práticos.
a) TEÓRICOS são os que negam a Deus no plano das ideias. Este ateísmo se subdivide em duas classes: teórico-negativo, se coincide com a simples ignorância da existência de Deus; e teórico-positivo, se nega a doutrina da existência de Deus que proclamam os demais homens e pretende demonstrar o contrário.
b) PRÁTICOS são aqueles que, embora conheçam em teoria a existência de Deus, vivem praticamente como se Deus não existisse, ou seja, sem ter nada para com a lei de Deus na sua conduta prática.
2. Modos de conhecer a Deus
Antes de especificar se podemos ser ateus teóricos (positivos ou negativos) convém recordar que a Deus lhe pode conhecer de duas maneiras:
a) COMO AUTOR DA NATUREZA, e neste sentido se pode chegar a seu conhecimento pela demonstração à luz da razão natural.
b) COMO AUTOR DA ORDEM SOBRENATURAL da graça e da glória, neste sentido só pode ser conhecido por via de revelação sobrenatural.
Conclusões
Tendo em conta tudo isto, vamos especificar a doutrina sobre as diferentes classes de ateísmo nas suas claras conclusões.
Conclusão 1ª. Existem de fato muitos ateus práticos, não só entre pagãos, mas também entre os cristãos.
É um fato tristíssimo que não necessita demonstração. Basta abrir os olhos para ver em qualquer parte do mundo multidões de homens que vivem praticamente como se Deus não existisse. Preocupados unicamente pelas coisas da terra, absorvidos por seus negócios temporais ou entregues desenfreados aos vícios e prazeres, vivem como se Deus não existisse, completamente contrários às exigências de sua lei santíssima. Muitos deles – a imensa maioria – não negam teoricamente a existência de Deus, mas vivem de fato como se Deus não existisse. São, claramente, ateus práticos, embora não sejam teóricos. Deles dizia o apóstolo São Paulo:
“Confessam que conhecem a Deus, mas o negam com seus atos. São pessoas abomináveis, rebeldes e incapazes de qualquer obra boa” (Tito 1, 16).
E em outro lugar:
“Já vos disse muitas vezes, e agora o repito, chorando: há muitos por aí que se comportam como inimigos da cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus deles é o ventre, a glória deles está no que é vergonhoso. Apreciam só as coisas terrenas!” (Filipenses 3, 18-19).
Neste último texto recorre São Paulo uma das razões principais do ateísmo prático, como veremos mais abaixo ao examinar as suas causas.
Conclusão 2ª. Existem muitíssimos ateus teóricos negativos que ignoram Deus como autor da ordem sobrenatural.
Como recordamos há um momento, para conhecer a Deus como autor da ordem sobrenatural é indispensável a divina revelação. Apenas com as forças da razão natural podemos chegar a demonstrar a existência de Deus enquanto criador da ordem natural, mas nada podemos alcançar da ordem sobrenatural (verbi gratia, do mistério da Santíssima Trindade, da graça e da glória, etc), que está mil vezes acima da ordem natural, transcendendo-lhe infinitamente.
É o caso de milhões de pagãos a quem não chegou todavia a luz do Evangelho. Conhecem a Deus como o autor da Natureza e muitos deles o adoram e servem a sua maneira, mas o ignoram como o autor da ordem sobrenatural da graça e da glória. Como é sabido, esta infidelidade puramente negativa, fruto da ignorância, é compatível com a salvação eterna se estão de boa fé em seu erro e se esforçam em cumprir os preceitos da lei natural com a ajuda da graça divina, que Deus não nega a nenhum homem de boa vontade: “E na terra aos homens de boa vontade” (Lucas 2, 14).
Conclusão 3ª. Não existem nem podem existir ateus teóricos-negativos que ignoram a existência de Deus como autor da ordem natural, a menos por longo tempo.
A razão é porque a existência de Deus como autor da ordem natural se impõe de uma maneira tão clara para todos homens, que apenas estando completamente cego para não vê-la brilhar na formosura e ordem admirável da natureza, na imensidão da noite estrelada, etc; a parte de que em qualquer parte do mundo e em qualquer religião podem os homens contemplar a variedade de coisas que lhe falam forçosamente de Deus: templos, ritos religiosos, respeitos aos mortos, etc. Não é possível, por conseguinte, permanecer – ao menos por muito tempo – na completa ignorância da existência de Deus como o autor da ordem natural.
Escutemos um teólogo contemporânea expondo estas ideias: [1]
No que concerne ao ateísmo negativo, a maior parte dos teólogos convém em afirmar que a ignorância completa de Deus não pode dar-se em um ser humano que tenha plena consciência de si mesmo. Segundo esta opinião, uma ideia qualquer acerca de um ‘Tu’ sobre-humano se impõe com tal espontaneidade e viveza ao pensamento são e reto, que não haverá jamais um homem plenamente consciente de si mesmo e à de que Deus exista, por mais imperfeitas que sejam as representações nas que Deus apareça.
A razão disso radica no que o homem, no mais íntimo do seu ser, tem afinidade com Deus, de modo que esta estrutura íntima de sua essência há de ser conhecida de algum modo, pelo menos por pressentimento.
Efetivamente, segundo os testemunhos da história, não posso encontrar um povo que não creia em Deus ou deuses. Este fato se prova com certa segurança que, de não impedi-lo à força, o conhecimento de Deus é inseparável da consciência que o homem tem de si mesmos.
Conclusão 4ª. É impossível que existam verdadeiros ateus teóricos-positivos, ou seja, homens que estão firmementes convencidos de que Deus não existe.
A razão é porque é impossível que o erro encontre argumentos verdadeiros para a verdade. A existência de Deus como autor da ordem natural está demonstradíssima, com argumentos irrebatíveis, pela simples razão natural; e, por si faltar algo, temos o testemunho infalível do mesmo Deus, que se dignou a nos revelar sua própria existência, inclusive como autor da ordem sobrenatural.
É um fato que existem uma infinidade de sistemas filosóficos ateístas, ou seja, que prescindem a existência de Deus em sua especulação e o excluem positivamente em seu desejo; mas daí não se segue que seus patrocinadores sejam efetivamente ateus por convicção. Uma coisa é a doutrina que se proclama teoricamente – embora seja com muita força e entusiasmo – e outra muito distinta da convicção íntima que dela se possa ter. Não há nenhum filósofo idealista que esteja tão convencido de que as coisas exteriores são pura ilusão da mente – como proclama seu sistema – que não comece a correr ao ver um touro que se aproxime impetuosamente contra ele.
Causas do ateísmo.
Ao examinar a continuação das principais causas do ateísmo, encontraremos a explicação e o porquê de tantos sistemas ateus como os que apareceram no mundo em todas as épocas da história da filosofia.
Como acabamos de ver, o ateísmo não pode ter causa racional alguma. Mas tem, no entanto, muitas causas de índole prática e afetiva. Vamos recordar algumas das mais importantes. [2]
1.ª O PREDOMÍNIO DAS PAIXÕES BAIXAS.
É uma das causas mais frequentes e eficazes do ateísmo. O homem que se entrega desenfreadamente aos seus instintos baixos e que, ao sentir a reprovação da sua própria consciência, que atua como pregoeira de Deus, se sente impotente para libertar-se de sua escravidão passional, chega um momento em que se rebela contra essa consciência e esse Deus que não lhe deixam viver em paz. Se esforçará por todos os meios ao seu alcance para convencer a si mesmo de que Deus não existe, e, em sua desesperação por não encontrar argumentos convincentes que lhe levem à negação teórica de Deus, lhe negará ao menos na prática, afundando-se cada vez mais na lama e imundice de seus vícios e pecados. Com razão dizia La Bruyère: “Quisera eu ver um homem sóbrio, moderado, casto e justo negando a existência de Deus. Esse homem, pelo menos, falaria desinteressadamente; mas um homem assim não se encontra em nenhuma parte”.
É um fato indiscutível que a polícia resulta em incômodo para os malfeitores. Por isso um homem tão suspeito de fanatismo religioso como Jean-Jacques Rousseau pôde escrever essas judiciosas palavras: “Mantende vossa alma em estado de desejar que Deus exista, e não duvidar nunca Dele”. E antes de Rousseau havia dito já Bacon de Verulâmio: “Ninguém nega a existência de Deus senão aquele a quem convém que não exista”.
2.ª O ORGULHO E O ÓDIO.
Escutemos Schmaus esta outra causa do ateísmo [3]:
O orgulho e o ódio. Estas duas atitudes são as que mais diretamente se opõe a abandonar nas mãos de Deus.
O ORGULHO se encerra em si mesmo, e fora de si mesmo não reconhece nenhuma classe de valor. É mais, como ele afirma, ao bastar a si mesmo não necessita desses valores. Crê que Deus, cujos mandatos deve reconhecer o homem, é um perigo que ameaça a liberdade e grandeza humanas. Recolhe para si uma espécie de grandeza divina. Neste sentido, afirma Bakunin que Deus, ainda no caso de que existisse, deveria ser destruído. Nietzsche, em idêntico sentido, dizia: “Como poderia eu tolerar não ser um deus caso haja deuses? Por conseguinte não há deuses”. A mesma vida de Nietzsche expõe como a atitude orgulhosa pode chegar a adquirir uma influência fatal sobre o homem. Nietzsche continua: “Eu tirei a conclusão, e agora é ela que me arrasta”. A autodivinização do homem incapaz de tolerar a existência de Deus se encarna no além-homem criado por Nietzsche, ser a quem se atribuem todas as opiniões que segundo a fé do crente corresponderiam somente a Deus. Muitas formas de filosofia existencial, não obstante falar de transcendência, negam a existência do Deus vivo porque Deus limita a liberdade e a independência do homem.
O ÓDIO, a outra atitude hostil a Deus, é a resposta que o coração humano, egoísta e enfrascado no mal, dá à santidade e superioridade de Deus. Como Deus é em tudo radicalmente distinto ao homem, se apresenta ante este impondo exigências e obrigações e constitui um motivo de profundo desassossego para o homem que vive num estado de autonomia exagerado, que crê bastar a si mesmo, que se isola hermeticamente e nega quanto não seja ele mesmo. Assim surge um sentimento de mal-estar que pode chegar a se converter em repugnância ou ainda em ódio absoluto. O ódio é uma reação natural contra a santidade pessoal de Deus, um ato de rebeldia contra Ele, algo egocêntrico e prazenteiro. O grau máximo de seu desenvolvimento lhe constitui essa forma de vida a que chamamos de Inferno. O ódio consumado pelo homem em sua peregrinação é precursor dessa rebelião consumada e satânica, própria do Inferno. O homem, obcecado pelo ódio, fica incapacitado para perceber dentro da História os valores divinos. O ódio a Deus é mais intenso que qualquer outra forma que possa dar ao ódio, já que é dirigido contra um valor que é infinitamente superior a todo outro valor. Deus é para o homem o mais importante valor pessoal, assim como é o valor mais próximo. Por isso, para rechaçar a Deus, o homem tem que fazer esforços muito maiores para rechaçar do que faria para rechaçar qualquer outro tipo de valor.
O que já dissemos continua válido no que concerne à época histórica nascida em Cristo. Porque Deus, por assim dizer, castiga ao homem em Cristo, e o homem, que agora quer se desentender deste Deus que se revela e nos aproxima de Cristo, tem que se esforçar muito mais que o incrédulo dos tempos anteriores ao cristianismo. Daí resulta que o ódio a Deus na era cristã apresenta um grau de especial intensidade, nem conhecido nem sequer possível nos tempos pré-cristãos.
3.ª A ORIENTAÇÃO MATERIALISTA DA VIDA MODERNA.
Estamos na época da tecnologia e do progresso material. A grandeza dos homens e a das nações se mede quase exclusivamente pela sua força econômica ou por seu poderio militar. Aos grandes problemas do coração e da inteligência se lhes concede menos importância que disparar uma bomba de cem megatons ou colocar um foguete em Marte. O homem, escravizado pela tecnologia, perdeu de vista o panorama soberano de seus destinos eternos. Se deixa arrastar, quase inconscientemente, pelo ambiente materialista que se respira em todas as partes. Viver: eis aí o único ideal da grande maioria dos homens. Viver, se entende, a vida de aqui embaixo. A de lá em cima, ante a majestade de Deus, nem sequer planeja. O resultado de tamanha inconsciência é um ateísmo prático, cheio de indiferença e frieza frente ao problema teórico da existência de Deus e, por conseguinte, frente ao problema de mais adiante.
Tais são as principais causas do ateísmo. Como se vê, nenhuma delas tem sua raiz na inteligência, senão unicamente no coração dominado pelas paixões, pelo orgulho e o ódio, ou pela corrente materialista da época moderna.