O Dia da comemoração dos Fiéis Defuntos, como o nome indica, é um dia para nos lembrarmos especialmente dos que já morreram. E, além de lembrar, é preciso rezar por eles.
É um dia também para nos lembrarmos especialmente que vamos morrer. “Memento mori”, diziam muitas vezes os cristãos uns aos outros; “Lembra-te que vais morrer”. Esta ideia ajuda-nos a fazer as escolhas certas ao longo da nossa vida, evitando certos caminhos, por mais apetecíveis que sejam ou pareçam ser.
Como explica o Catecismo da Igreja Católica, apenas nos podemos arrepender dos nossos pecados enquanto estamos vivos. Assim que morrermos seremos julgados por Deus, seremos julgados pelo Amor.
É agora, enquanto temos tempo, que devemos escolher viver com Deus e arrependermo-nos dos pecados. Depois disso é tarde demais.
Memento Mori
Carlos Ramalhete
Amanhã seria o fim do mundo. A importância que se dá à suposta predição maia é diretamente proporcional ao esforço que a nossa sociedade faz para esconder o fim de cada um. Para todos nós, a morte é o fim do mundo. Pode ser o fim de um mundo, para quem crê; pode ser o fim de tudo, para o descrente; mas com certeza é o fim da vida tal como a conhecemos.
Na nossa sociedade morre-se às escondidas, em um hospital. Pela primeira vez na história da humanidade, é possível morrer de velho sem jamais ter visto um cadáver. Um dia a pessoa estava ali, no outro dia no hospital, no dia seguinte desapareceu. Esta negação de que a vida tenha um fim é apenas outro aspecto do culto à saúde que nos deu o antitabagismo, as dietas, as academias em que se persegue a ilusão da eterna juventude. É outra face do desprezo aos idosos e à sua experiência.
Assim, a sociedade finge viver um eterno presente; algumas décadas atrás, parecia ser da ordem natural das coisas que houvesse o então chamado mundo livre e os países por trás da Cortina de Ferro. Hoje o mesmo acontece com peculiaridades absolutamente transitórias de nosso tempo, da última moda em redes sociais à última tentativa de transformar alguma instituição de direito natural em outra coisa: é o casamento que deixa de dizer respeito à perpetuação da espécie e passa a ser acerca de sexo e dinheiro; é o direito penal que deixa de se preocupar com a segurança da população para garantir os direitos humanos dos criminosos…
Tudo o que é sólido desmancha no ar, mas esta dissolução é percebida como um retrato instantâneo da solidez. Tudo o que é transitório é tratado como se fosse permanente, e tudo o que é permanente é sujeito a reengenharias mil.
Daí a sensação social de insegurança, a percepção de que a sociedade como um todo é uma ilusão. E, da sociedade, passa-se à vida no planeta. Não há tanta diferença entre o ambientalismo radical e a suposta predição maia: ambos são reflexos de uma percepção generalizada de haver algo profundamente instável, profundamente desordenado, na maneira supostamente perene como a nossa sociedade se relaciona com ela mesma e com o mundo ao redor.
O fim que nos virá, contudo, não é o do mundo, mas o nosso. A sociedade perdura, como uma cigarra que sai da casca antiga e ganha mundo com um corpo novo. O homem, contudo, deixa o mundo. E é disto que nos esquecemos. “Memento mori”, diziam os antigos: lembra-te de que morrerás. Se não amanhã, um dia. Os maias que já morreram não têm mais nada a ver com isso.
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Meditar sobre a morte mudou minha vida
Hoje, vejo a providência de Deus no fato de, três anos antes do início dessa crise, ter colocado sobre a minha mesa uma pequena caveira de cerâmica e começado a meditar sobre a minha morte, imitando o fundador da minha ordem religiosa, o Beato Tiago Alberione. Naquela ocasião, depois de sete anos no convento, o mal-estar da mediocridade e da falta de fervor medrava em minha vida espiritual. Eu protestava a Jesus na oração, dizendo-lhe: “Ajuda-me! Enche-me novamente com teu fogo e teu fervor”. Ele respondeu a minhas orações com a graça da meditação sobre a morte. De uma hora para a outra, tudo ficou claro; senti como se tivesse ido ao oftalmologista e saído de lá com a prescrição certa. Meditar sobre a morte mudou minha vida.
Um dos benefícios do memento mori, a prática da meditação sobre a morte, é ser uma oportunidade para a graça divina trazer à tona e à nossa atenção o fato de agirmos e pensarmos muitas vezes como gente sem fé. Ex-ateia que sou, Deus me ajuda constantemente a ver quando ainda me comporto como se Ele não existisse e Jesus não tivesse me salvado. Católicos de berço e convertidos de outros credos e religiões também não estão imunes a esse tipo de comportamento. Muitos de nós vivemos o dia-a-dia de modos que revelam uma incompreensão básica da vida e da morte sob a perspectiva cristã. Podemos recorrer aos ensinamentos da Igreja nessas matérias para, em alguma medida, remediar o problema, mas a prática da meditação sobre a morte ajuda-nos a ver de verdade como nossas vidas ainda estão muito enredadas nos fios dessa mentalidade venenosa.
Enquanto os católicos respondem à crise da COVID-19 na internet, vêm à tona algumas manifestações de incredulidade na atitude de alguns perante a vida e a morte. Num dos extremos estão os que se esconderam em casa e só pensam em si. Finalmente forçados a encarar a morte, ficam dominados pelo terror e o medo que prevalecem. É claro que todos o estamos sentindo em certa medida, mas para a maioria de nós é fácil reconhecer que o medo exagerado e egoísta não é a resposta cristã ideal a esta situação. O outro extremo é um pouco mais complicado. Algumas pessoas estão declarando de forma descarada que não têm medo da morte nem estão tomando os cuidados rigorosos exigidos pelas circunstâncias. À primeira vista, uma tal atitude pode até parecer santidade. Afinal, os mártires demonstraram coragem diante da morte. Esquecemo-nos, porém, que eles tampouco encaravam a vida e a morte com leviandade.
Embora nossa fé exija que aceitemos a morte, ela também nos chama a compreender o valor e a fragilidade surpreendentes de nossa vida e da vida do próximo. A vida humana é valiosa em qualquer circunstância, em qualquer estágio de desenvolvimento e em qualquer idade. Como disse o Papa São João Paulo II na Evangelium Vitae: “O sangue de Cristo, ao mesmo tempo que revela a grandeza do amor do Pai, manifesta também como o homem é precioso aos olhos de Deus e quão inestimável é o valor de sua vida” (n. 25). Muitos de nós professamos crer nisso, mas outra coisa que essa pandemia trouxe à tona foi o desprezo pela vida dos idosos.
Infelizmente, algumas pessoas têm afirmado que, como os idosos morrerão em breve de qualquer jeito, não há motivo para maiores preocupações. No entanto, não há nada em nossa fé que diga que a vida perde valor com o tempo. Toda vida merece ser preservada como um tesouro precioso até sermos chamados por Deus para abrir mão dela. A meditação sobre a morte pode nos ajudar a confrontar alguns aspectos da vida que, por medo da morte, não valorizamos. Memento mori nos auxilia a ter a coragem necessária diante da morte, mas também nos leva a cuidar de nossa própria vida e da vida dos outros. Quando pensamos em nossa morte com frequência durante a oração, aprendemos que nossa vida são preciosas e que podemos confiá-las a Deus.
A vida humana é valiosa em qualquer circunstância, em qualquer estágio de desenvolvimento e em qualquer idade.
Geralmente, os católicos têm liberdade para meditar sobre a morte quando se sentem preparados para fazê-lo. Hoje, no entanto, cada dia nos apresenta um convite doloroso e manifesto para meditarmos sobre a morte. Se não o aceitarmos agora, daremos uma brecha para que esse estado constante de memento mori nos leve à tentação e ao desespero. Deus sempre tira o bem do mal, e Ele pode usar essa pandemia para nossa santidade, ainda que isso nos leve à morte. Mas devemos também convidá-lo a entrar em nossas vidas, a fim de que possamos nos preparar. Podemos fazer isso começando a meditar sobre a morte com regularidade ou dedicando-nos com maior intensidade a essa prática. Só precisamos abrir nosso coração para Deus a fim apresentar a Ele o medo que sentimos da morte. Ele pode, com certeza, iluminar a escuridão em nosso coração e em nosso mundo.
Algumas destas perguntas podem servir de estímulo para os católicos que nunca meditaram sobre a morte no contexto da oração:
- Como Deus está me chamando a contactar a comunidade mais ampla nesta época de medo, doença e instabilidade financeira? Que riscos Deus quer que eu corra para servir o seu povo?
- Como Deus me chama a ter um cuidado rigoroso a fim de evitar a disseminação do vírus entre os vulneráveis e os fracos? Como posso valorizar a vida e me preparar para a morte?
- Como Deus está me pedindo que escute as ansiedades e medos dos que estão ao meu redor e como pede que eu expresse os meus?
- Dedique um momento da oração para refletir sobre a fragilidade e a beleza da vida humana em geral e de sua vida em particular. Em seguida, dedique um tempo para refletir sobre a inevitabilidade de sua morte. Imagine-se aos pés da cruz e converse com Jesus sobre tudo o que está acontecendo.
- Reflita sobre a pergunta: “Estou preparado(a) para morrer?” Faça um exame de consciência e procure a confissão, se possível; se não puder ir, faça um propósito de ir tão logo seja possível e manifeste a Deus seu arrependimento e contrição.
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